09 - Galford Primeiro Ato

 

Kid entrou no avião com os pensamentos perdidos em momentos do passado, momentos de alegria entre seus amigos, tanto os que ainda vivem quanto os que já partiram. Lembrava-se de sua infância, pesada e conturbada nas florestas selvagens do novo continente, antes dele ser “descoberto” por pessoas “civilizadas” por assim dizer, era um pequeno e mirrado selvagem de uma das tribos indígenas da América do norte, estavam nas planícies a muitos anos, vivendo da terra e pela terra como todo homem deveria viver.

 

 

Era da tribo dos comanches, caçadores de búfalos e guerreiros destemidos, mas não era o caso de Kid, quase sempre era deixado de lado nas atividades de aldeia, dado seu pequeno tamanho, o tinham como um peso para o grupo e frequentemente era hostilizado por outros de sua idade.

No entanto, os anciões da tribo mantinham-no sob vigilância constante, sentiam nele um poder que lhes era estranho, a anos não viam uma criança que julgassem ser filho de Gaia, mas esse parecia ser o caso, mesmo que o corpo fosse fraco, a concentração de poder nele era perceptível, tanto que o nome que recebeu ao nascer é Wakanda, que quer dizer de poder mágico interno. Apesar de toda a maldade que enfrentava em sua tribo, sua ligação com eles e com a terra e os animais era incontestável, certa vez atirou-se contra um lobo cinzento que atacava uma das crianças menores de sua tribo, o lobo se encurvou a ele e fugiu do lugar, ele tinha pouco mais de 15 anos quando isso aconteceu e seus anciãos reconheceram que ele certamente seria um filho de Gaia. Passaram os próximos anos preparando-o para o dia de sua transformação, o dia em que seria assolado por dor e selvageria além de tudo o que o homem pode suportar e finalmente seu destino estaria definido e seria definitivo, ele seria um guardião de Gaia.

 

 

Kid finalmente chegou a África, mais precisamente no Congo para iniciar sua peregrinação até encontrar seu novo mentor, os pensamentos de sua antiga tribo ainda lhe enchendo a mente, parece que já estava passando por um dos testes do primeiro, não eram lembranças comuns, cheias de falhas e espaços, era como um filme, como ver a cena exatamente como ela ocorreu, mas sendo apenas um telespectador.

Procurou um hotel para passar a noite e descansar, estava sentindo-se indisposto demais, não tinha certeza do que estava sendo feito com seu corpo e mente, mas estava minando sua energia, precisava de comida e descanso para iniciar o verdadeiro teste.

Passou o dia e a noite alternando entre comer e dormir e pela manhã conseguiu um carro para leva-lo aos limites da floresta, de onde teria de seguir sozinho até encontrar, se conseguisse, o primeiro. Apesar dos esforços, não conseguiu dormir bem, a força das lembranças estava atingindo um nível que o deixou bem preocupado, estava começando a “sentir” física e emocionalmente tudo o que estava lembrando, cada suor lhe parecia real, cada insulto que sofreu quando criança lhe causava tristeza enorme como se fosse criança novamente, a primeira surra que levou dos outros garotos, a primeira vez que um dos anciões o deixou encarcerado por um longo tempo enquanto decidiam o que fazer sobre seus poderes ocultos e nesse momento fora tomado por uma das lembranças de que menos gostaria de ter, o período e que foi preso para a primeira transformação.

 

 

Wakanda conversou com os anciões e foi decidido que estava na hora do ritual de passagem ocorrer, os anciões sabiam que feito o ritual de passagem ele seria um homem para a tribo e se o poder latente fosse finalmente se manifestar, seria nesse momento. Iria completar dezoito anos em três dias, tamanho era o poder que vinha de seu interior que os anciões acharam por bem retirá-lo da aldeia e fazer o ritual próximo a uma caverna, não muito longe dali, onde poderiam prende-lo selando a entrada da caverna com uma grande pedra, ele ficaria sozinho enquanto seu corpo, inutilmente, resistiria a transformação e entendam, a primeira transformação é avassaladora, algo que pode levar um homem a insanidade e ao desespero absoluto, algumas pessoas não resistem e simplesmente se matam após a primeira transformação, dada a possibilidade de passar por isso novamente.

O grupo cumpriu o rito, fizeram uma fogueira na entrada da caverna, contaram a Wakanda tudo o que puderam sobre ser um filho de Gaia, não foi o aconselhamento padrão para ao rito de transição para a vida adulta, mas os mais velhos conheciam a história, foram preparados para esse momento e finalmente estavam prestes a viver, não que estivessem ansiosos, as primeiras tribos foram destruídas pelos primeiros Aldatu, pois não tinham o conhecimento do poder que os filhos de Gaia receberam e menos ainda da selvageria que acompanhava tal poder.

Após contarem a ele tudo que puderam, fizeram suas preces a terra e aos espíritos antigos e o despacharam para a caçada a Búfalo, uma das etapas para se tornar adulto. Wakanda seguiu durante a noite para um grupo de búfalos que estava pastando na região, deveria isolar e matar um deles sem usar armas de sua tribo, apenas o instinto de caçador e o que a terra lhe oferecesse deveria ser usado.

Caminhou cerca de três horas durante a noite até chegar a manada, ficou escondido eu meio ao mato e contra o vento para que seu cheiro não chagasse até a manada, estava bastante preocupado, a quantidade de coiotes e lobos na região era alta, fora os pumas que costumavam matar aqui e ali.

Manteve-se abaixado em meio ao mato seco, porem alto, e esgueirou-se para o mais perto que pode sem chamar a atenção de uma possível presa, para seu azar, búfalos costumam ficar amontoados uns sobre os outros e pegar um isolado é um trabalho de paciência e que as vezes leva dias, infelizmente ele completaria dezoito anos em dois dias, então precisava estar caçar o búfalo antes disso.

Passaram-se horas de caçada nas quais ele afastava-se cada vez mais da caverna enquanto seguia a manada, viu alguns filhotes ficando um pouco para trás do grupo, mas seu orgulho comanche nunca lhe permitiria caçar algo que não fosse verdadeiramente um desafio.

Após um dia inteiro de caçada ele finalmente encontrou a presa perfeita, um búfalo jovem e saudável, forte e imponente dentro do grupo, se tivesse de matar um, tinha que ser ele, fixou seus olhos na presa que estava um pouco afastada do grupo, seus sentidos fervilhando, sentiu a força de Gaia tomando conta de seu corpo, sentiu o poder gritando para ser liberado, a consciência começou a falhar, ele ficou em uma posição que lembrava um animal pronto para atacar, seus olhos, que eram negros, brilharam amarelados enquanto um som gutural saiu de sua garganta, os animais parecem ter sentido o predador na região e ficaram alvoroçados, iam debandar, mas Wakanda resolver atacar.

Era como uma bala de canhão em direção a seu alvo, o Búfalo percebeu a chegada do predador e decidiu lutar por sua vida, ambos indo um em direção ao outro, Wakanda desviou da investida no ultimo instante indo para direita, sem se afastar do animal, desferiu um soco tão violento que o fez rolar pelo chão como um carro que acaba de colidir com algo. O búfalo levantou-se enfurecido, e virou-se para seu predador, apenas a tempo de vê-lo, como uma fera mortal, muito perto para qualquer reação, Wakanda enfiou o braço no pescoço do animal até seu ombro atravessando tudo e puxou de volta, por um instante foi possível ver através do animal, o búfalo arfou sofrendo e caiu.

Neste momento o comanche voltou a si, seus olhos negros como sempre, o corpo dolorido e num estado de cansaço sem precedentes, ele caiu de joelhos, apesar de fora de si, registrou cada movimento, registrou todo o poder que ele usou para derrubar com um soco o enorme animal ao seu lado, viu em câmera lenta o búfalo vindo em sua direção, olhou em volta, tudo movia-se com preguiça e leveza, somente ele movia-se normalmente, ou ao menos era o que lhe parecia, desviou do touro com facilidade e aplicou o soco, antes do animal levantar-se já estava sobre ele, sentiu seu braço atravessar o búfalo como se este fosse feito de folhas, não houve resistência, não foi uma luta, nem uma caça, foi apenas um abate, limpo e rápido.

Ficou ali, recuperando-se do uso destes dons assombrosos por alguns minutos enquanto o sangue do búfalo se esvaía criando uma poça sobre a terra fofa e coberta de grama, Wakanda perdeu alguns minutos olhando para o sangue e nesse devaneio vazio sentiu algo aproximando-se, um puma acabara de dar o bote, mais uma vez ele foi dominado pelo poder de Gaia, a boca escancarada do puma a menos de cinco centímetros de seu rosto, o índio levantou o braço de forma violenta, arrancando a cabeça do animal e desmaiou.

Wakanda despertou alguns minutos depois, uma matilha de lobos se aproximava uivando, o alfa do grupo adiantou-se e, sem demonstrar hostilidade foi até o índio, fitou por alguns instantes e por fim deu meia volta e rosnou para os outros de seu bando para bater em retirada.

Levantou-se ligeiro, respirou fundo, precisava arrancar a cabeça do Búfalo e levar aos anciões, procurou uma pedra fina, e usou para separar a cabeça do animal, estava cansado e faminto, mas não queria se colocar em perigo e usar aquele dom novamente, precisava contar aos anciões o que houve e procurar respostas.

Com o corpo na condição em que estava, levou pouco mais de meio dia de caminhada para voltar a caverna. Quando retornou aos anciões e lhes contou como tudo ocorreu, eles muito se admiraram e deram a Wakanda um novo nome, a partir daquele momento seria chamado de Kanda Tala, que significa “Poder mágico do Lobo que espreita”.

Os anciões avaliaram bem as palavras de Kanda Tala no que diz respeito a seu poder latente, colocaram-no no fundo da caverna, foram para a entrada e derrubaram duas pedras pesadas, um dos anciões era também um curandeiro, mago da aldeia, ele executou feitiços de proteção e selamento para que a pedra não fosse mexida até que ele ordenasse, teria de ficar ali, durante todo o período de transformação e fúria, pois os feitiços só teriam poder se ele entregasse sua vitae durante intervalos regulares.

 

 

Kid despertou nu em uma floresta, não tinha certeza de onde estava, seu corpo coberto de suor e pelos grossos cobrindo sua pele, como se estivesse numa meia transformação, seus braços um pouco mais longos e os dentes expostos. Tentou reverter a transformação, mas não obteve sucesso, tento usar algum de seus dons mentais para procurar Galford ou algum inimigo, mas não obteve êxito, apenas um poder pare funcionar no momento, bem na verdade não é bem um poder, mas uma condição natural de sua raça, ele sentia-se um animal como a muito tempo não sentia, sentou-se no chão.

Sentiu-se como nos primeiros dias em que esteve com o ancião que lhe contou sobre Galford, um verdadeiro animal, filho de Gaia nascido e criado na terra, tudo lhe era extremamente familiar, mesmo não tendo lembrança alguma de já ter visitado aquela floresta.

Colocou-se numa posição um tanto grotesca de quem estaria em quatro patas e mesmo sem perceber transformou-se num lobo negro e grande, muito maior que um lobo comum, mesmo sobre quatro patas devia ter dois metros de altura, respirou fundo algumas vezes sentindo o ar de forma diferente do que o homem sente, ouviu os animais a sua volta, pássaros, roedores, répteis e muitos outros, todos estavam ali e pareciam sentir sua presença, temiam, ele sentia o medo das presas....sentiu então fome...rosnou alto, uivou e pôs-se a caçar.

 

 

Assim que as pedras foram jogadas na entrada da caverna, Kanda Tala sentiu um arrepio lhe correr pela espinha, a noite chegaria em breve, com ela a confirmação de seu aniversário e então, o cumprimento de seu destino.

Estava um tanto assustado, saber que tal poder viria a seu corpo através de dor não era algo fácil de digerir, ficou as ultimas horas como “humano” tentando imaginar o sofrimento que teria, talvez na doce ilusão de que, se conseguisse imaginar o pior, seria mais fácil lidar com o que viria, mas em fim, ninguém realmente sabe o que é a transformação de um Aldatu até que o próprio seja obrigado a passar por isso.

A noite caiu e com o ultimo raio de sol veio a primeira avalanche de sofrimento.

Kanda Tala foi invadido por um pode auditivo simplesmente inexplicável, era capaz do absurdo agora, ouvia o próprio sangue circulando por seu corpo, as batidas de seu coração soavam como tambores ensurdecedores, levou as mãos ao ouvido para tapá-los e o contato forte entre sua mão e suas orelhas quase o levou a inconsciência tamanha dor que sentiu, foi como uma bomba estourando na sua orelha.

Caiu de joelhos no chão e o baque de seu corpo o fez vomitar, o vomito caindo no chão parecia uma cachoeira jogando a água sobre pedras na base. O mais lentamente possível deixou-se cair no chão, quase deitando-se sobre ovos para não fazer muito barulho, já no chão levou outro susto, o contato com o solo o permitia sentir vibrações da terra, sentiu a audição se expandindo e aumentando o alcance, ouviu a respiração sofrida e carregada do ancião do lado de fora da caverna, ouviu animais ao redor guinchando de medo pois sentiam que algo não natural estava por perto, ouvir cobras arrastando-se no solo da região, mais adiante ouvir pássaros batendo asas nos céus, a alguns quilômetros dali ouviu cavalos selvagens cavalgando pelas planícies, nesse momento apagou, a dor o venceu, mas não ficou mais que dez segundos apagado até que a audição, ainda se expandindo chegou a aldeia onde morava, estava a quilômetros de distancia da aldeia, praticamente meio dia de caminhada, mas mesmo assim ouvia cada passo que era dado por todos.

Ouvia o choro das crianças, ouvia o cochicho das mulheres e as reclamações dos homens quanto a Kanda Tala, ouvi-os conspirando contra sua vida e neste momento, como se isso fosse possível, sentiu a segunda avalanche de dor invadir seu corpo.

 

 

Kid despertou novamente e dessa vez de volta ao corpo humano, corpo este que se encontrava coberto de sangue. Sentou-se no mato que crescia em meio a uma clareira e olhou em volta, dois lobos, um urso e um leão da montanha estavam mortos ao seu lado, seu ouvido zunia e a dor de sua lembrança ainda o deixava com vontade de vomitar, mas pelo menos não estava mais preso nelas.

Levantou-se um tanto zonzo, pois as lembranças vivas de sua primeira transformação o deixaram na mesma condição daquela época.

Sentia-se pesado, cansado e acima de tudo seu corpo inteiro parecia ter sido jogado num triturador preparado para surrar sem matar, tudo estava roxo e dolorido, não se lembrava de ter matado aqueles animais, mas parece que eles lutaram muito antes de cair.

 

 

Assim que sua audição atingiu seu ápice e ele foi capaz de ouvir absolutamente tudo num raio de pelo menos vinte quilômetros, foi a vez de o olfato dominar seu corpo, e nessa hora seu estomago, que já não tinha o que vomitar, contorceu-se de uma forma inimaginável, cada odor que ele conseguia sentir numa escala absurda de quantidade e precisão o fazia sentir náuseas, que lhe forçavam a vomitar nada sem parar, seu próprio cheiro o levou a loucura, começou a babar e balançar pra frente e para trás quase em posição fetal, queria morrer, queria ser decapitado agora e tinha certeza de que assim que fosse possível era exatamente isso que faria, assim que tivesse controle sobre seu corpo novamente, iria se matar, não passaria nunca mais por isso.

Para seu desespero o mesmo processo da audição ocorreu com o olfato e a expansão o fez desejar não apenas a morte, mas o fim de toda a existência, desejou o fim de tudo o que fora criado no universo, nada deveria ser salvo, tudo deveria ser desintegrado para que não houvesse mais odor em nada.

A medida que seu sentido se expandia ele voltava a se contorcer, tentou parar de respirar, mas isso era ainda pior pois quando seu corpo o obrigava a respirar para continuar vivo ele trazia consigo uma infinidade de odores que o faziam sentir o gosto na garganta, suor, sangue, terra, pedra, fezes de animais, pelos, penas, folhas, galhos, répteis, aves, homens, e com certeza o que ele mais temia, os odores concentrados na alteia, esses odores fizeram lagrimas escorrerem de seus olhos, os humanos eram de longe os seres mais fétidos de tudo aquilo que ele acabara de vivenciar. Seu estomago dava voltas e voltas sem parar, ele contorcia tanto o abdome tentando, inutilmente, vomitar que a dor muscular naquela região já estourava toda e qualquer mensuração humana, parecia que uma montanha inteira havia sido jogada sobre seu corpo, Kanda Tala respirava com dificuldade indescritível, mas seu corpo estava oscilando entre consciência e inconsciência e isso lhe parecia bom, devia morrer em breve.

 

 

Kid despertou novamente e dessa vez estava sendo carregado nas costas de um grande urso, o cheiro diferente o entregou de imediato, ele reconhecia, era Galford.

- Vai continuar moleque? – Perguntou o primeiro em tom zombeteiro.

- E...pp...por....que...eu...des...des...sistiria? – Disse antes de desmaiar novamente.

Galford sorriu, já esperava por essa resposta, mas saber que ele estava disposto a reviver o momento mais desesperador de sua vida, com certeza lhe dizia muito sobre esse filhote perdido.

 

Finalmente foi vencido pelo sentido do olfato aguçado e desmaio. Mas, mais uma vez isso não durou muito, um tremor percorreu seu corpo e ele experimento o aumento exponencial de um novo sentido, sua visão, seus olhos arderam muito e era impossível mantê-lo fechados, pareciam estar ressecando e ele era obrigado a piscar incessantemente na esperança de umedecer os mesmos.

Estava dentro de uma caverna, lacrada, sem fonte alguma de luz durante a noite e mesmo assim parecia que estava ao meio dia, cada piscada parecia um raio de sol dedicado a fazer de sua vida cheia de luz insuportável.

Colocou as mãos sobre os olhos na tentativa de controlar a quantidade de luz, mas nada parecia funcionar, seus próprios olhos emitiam luz e ele não conseguia deixá-los fechados por mais que alguns segundos até que sentisse que areia era jogada sobre eles. A partir dai um nono dom dos olhos começou a se revelar, além de ver tudo com clareza e luz absurda mesmo num lugar tão fechado, ele podia ver tudo, absolutamente tudo dentro da caverna, desde as rochas mais afastadas até os grãos de areia no chão, o pó caindo do teto, os insetos que andavam pela parede, era como descobrir um novo mundo dentro do mundo que já conhecia.

A luz voltou a ofuscar sua visão, ele caiu de joelhos e ficou ali, vendo nada além de puro branco, era como se estivesse cego agora, ficou em estado de dormência, audição, olfato e visão dominando sua mente por completo.

 

 

Galford levou Kid até uma caverna na base de uma montanha, seu interior era enorme, a impressão que se tinha era que a montanha não passava de uma casca vazia. Caminhou alguns minutos, ainda com Kid nas costas até chegar a uma fissura a esquerda, esta era estreita, Galford, na forma do urso não poderia passar, então voltou a sua forma humana e colocou Kid na "cacunda" levando-o pela passagem.

Era íngreme e irregular, desceu com certa dificuldade tentando não bater seu novo aluno pelas paredes. Levou cerca de meia hora para chegar onde queria, um grande salão, entalhado no coração da montanha, muito abaixo da superfície.

Lá havia no centro um símbolo lunar antigo, um circulo com raio de mais ou menos dois metros, havia pilares nas paredes, oito no total, cada um deles com escritas antigas, do tempo dos primeiros filhos de Gaia, os primeiros homens que Gaia presenteou com seus conhecimentos.

Cada um desses pilares representava algo que Gaia mais valorizava nos homens, Amor, Coragem, Força, Sinceridade, Serenidade, Honra, Conhecimento e Selvageria, esse ultimo parece estar fora de contexto, mas a verdade é que mesmo o homem mais sereno tem que saber a hora de deixar seus instintos decidirem seu destino e é nessa hora que ser selvagem faz toda diferença.

O símbolo lunar era simples, havia o circulo e dentro do circulo um desenho que representa a própria Gaia, uma Lua Nova dentro de uma lua cheia. Galford colocou Kid dentro do símbolo e se afastou, fechou os olhos e disse.

 

Walk, no sum ed Gaaya, ut ma et clam casta!

Que quer dizer, "Desperte, filho de Gaia, sua mãe o convida para sua casa"

 

Kid despertou com olhos arregalados e o corpo em brasa, levitou alguns instantes no ar e desapareceu.

- Sobreviva ao amor de nossa mãe e eu com certeza irei treiná-lo. - Galford sorria um tanto malicioso quando disse tais palavras, sentou-se no chão e adormeceu.

 

 

Mais uma vez Kanda Tala sentiu o corpo estremecer e isso o tirou do estado de torpor em que se encontrava, mais uma vez seria assolado pelo crescimento absoluto de um de seus dons, tremia com a perspectiva do que ainda havia de vir, e sim, ele deveria mesmo temer.

Sua boca começou a salivar muito enquanto o paladar era aumentando a tal ponto que ele podia saber a direção da substancia carregada pelo ar até seus pelos gustativos que agora pareciam estar combinados com todo o seu corpo, o gosto de seu suor, mesmo que não estivesse em sua boca era horrível, afinal não se banhava a alguns dias, o gosto da terra no chão, o gosto de sua roupa, de suas lágrimas, o saber das substancias que corriam em seu corpo, tudo que nosso corpo sente, tudo que se transforma em nosso corpo tem inicio com a liberação de alguma substancia, e nesse momento Kanda Tala era capaz de sentir o gosto de todas elas, a mistura de sabores inusitados deixou seu cérebro dormente ao passo que tentava processar toda essa informação na tentativa de isolar, separar e criar padrões para toda essa informação ser acessada naturalmente quando fosse necessário. O jovem sentiu o gosto do sangue de búfalo em seu braço, sentiu o gosto do próprio sangue, sentiu o gosto de suas fezes mesmo que ainda em processamento, nesse momento ele vomitou, e o efeito foi uma cadeira sem fim de sensações horríveis, não havia mais nada em seu estomago, então ele simplesmente vomitou acido estomacal, liquido que o fez querer vomitar ainda mais, começou a chorar, não queria mais viver, não queria mais esse poder, queria apenas ser enterrado no campo com os outros de sua tribo, queria apenas ser poupado de toda essa loucura.

 

 

Kid despertou, seus sentidos quase fora de controle, as lembranças de sua primeira transformação eram tão vividas quanto no dia em que ocorreram, seu corpo são não estava sofrendo tanto quanto antes pois agora ele sabia do que se tratava, sabia controlar suas emoções e o poder que Gaia lhe dera. Recuperou-se dessa ultima avalanche de sensações e olhou em volta, estava numa dimensão que lembrava muito o véu que visitara a tão pouco tempo, parecia um esboço da terra, mas estava em um local completamente diferente, algo chamou sua atenção nos céus, fechou os olhos e percebeu que estava olhando para a terra, olhou em volta incrédulo, mas já sabia onde estava,  era uma dimensão paralela a Lua, estava dentro de uma das crateras, a Clavius, que fica praticamente no inicio de uma mancha branca que vemos na lua cheia.

Seu primeiro impulso foi andar como se estivesse em gravidade menor, mas descobriu que não poderia brincar de astronauta, seu corpo estava ali, em carne e osso, mas parecia um espírito flutuando sem poder dar impulso em lugar algum, bastava querer ir para um lado e para lá ele ia. Olhou em volta e não conseguiu ver nada, mudou para a forma de lobisomem e ainda não via nada, mas sentia o poder de Gaia e sabia para onde deveria ir, seu corpo ia iniciar um voo naquela direção quando novamente as lembranças tomaram conta de tudo e ele apagou.

 

 

Conseguiu recobrar um pouco de cor e organizar sua mente enquanto mais uma vez seu corpo estremecia e uma nova onda, o que ele mais temia, vinha sobre si, tato, o efeito do aumento exponencial dessa habilidade tão comum e por vezes "esquecida" de tão natural ao homem, trouxe consigo uma das piores sensações que Kanda Tala já havia sentido, seu corpo parecia todo feito de água, cada parte que era tocada ondulava por todo o corpo de maneira que o simples fato de estar com o joelho no chão estava lhe causando tamanha dor que ele simplesmente não conseguia mover um dedo sequer, o ardor na narina, o ressecado dos olhos, o ácido estomacal em sua boca, e o bater incessante de seu coração reverberando em seus ouvidos, fazendo seus tímpanos vibrarem sem fim, tudo isso somado a sua nova capacidade de sentir cada pelo de seu corpo balançando com a menor brisa, fez com que esse fosse de fato, seu pior momento até aqui.

Era capaz de sentir tudo a sua volta, o ar que ia contra as paredes e voltava até seu corpo como se estivesse dando bofetadas, suas vestes esfregando-se em seu corpo, a dilatação de suas veias enquanto o sangue circulava, seu coração no movimento de sístole e diástole causando dor insuportável, as ligações neurais em ritmo acelerado, ele era capaz de sentir as ondas de corrente elétricas geradas nas ligações neurais, sentia seu corpo se preparando para uma transformação que ele jamais seria capaz de esquecer, pois tudo o que passou até agora era parte do processo de um metamorfo, tudo isso era necessário para que o corpo humano se prepare para o grande final, quando ele revelará "seu totem".

 

 

Kid flutuou adormecido por horas aparentemente sem rumo, mas na verdade conduzido até onde Gaia estava, despertou de repente sentindo todo o corpo etéreo formigando, as lembranças do aumento de tato que sofreu na primeira transformação eram realmente aterrorizantes, pois ela intensificava ainda mais todo o desenvolvimento dos outros sentidos. Assim que despertou e conseguiu se concentrar sentiu o poder de Gaia se tornando sufocante, o que lhe indicava que estava na direção certa, seguia para o lado oculto da lua. Quando estava praticamente no limite viu uma grande construção, um verdadeiro templo de Gaia, na entrada do templo havia uma grande estátua, com pelo menos vinte metros de altura na forma de uma mulher nua, ficava a direita dos portões de acesso ao pátio do templo, a estatua tinha um olhar fixo e um tanto frio, a mulher fora entalhada com cabelos longos que iam até o solo, ondulados, o rosto divino e as curvas perfeitas, essa era a forma que Gaia assumiu entre os homens. Kid cruzou os portões e assim que o fez parou de flutuar e sentiu como se estivesse novamente na terra.

Desceu alguns lances de escada para o pátio que era na verdade como um coliseu quadrado, as escadas iam ate um tablado de pedra lisa, com um mal pressentimento Kid pisou no tablado e confirmou suas suspeitas, era um campo de batalha, assim que pisou pode ver seu adversário, um Aldatu do totem da Serpente, um homem cobra, forte, com adornos sobre todo o corpo, ferramentas mágicas e antigas de batalha, Kid sabia que não podia mais voltar, se batalha é o que Gaia quer, batalha ela terá.

 

 

O novo dom de Kanda Tala se normalizou assim como os outros, como se o controle sobre isso viesse quando a pessoa desistisse de lutar para controlar, e isso acontecia sempre no limite entre consciência e inconsciência. Os cinco sentidos já haviam sido colocados a prova, então faltava apenas a temida transformação de que os anciões tanto lhe falaram, o que lhe faria querer a morte, não que o restante não o tenha feito desejar o mesmo, mas sentia que não estava preparado para viver esse momento.

Antes do corpo estremecer, aproveitou que tinha algum controle sobre si e sentou-se, cruzou as penas e ficou parado, apenas aguardando, aceitando seu destino.

Finalmente começou e ele teve certeza de que não estava preparado para viver esse momento.

Com todos os sentidos aguçados a um nível acima de qualquer animal teve início a transformação de seu corpo, primeiro grossos pelos cresceram por toda a parte e isso em si já vou inimaginável, cada pelo parecia um pedaço de madeira atravessando sua pele de dentro para fora, pernas, braços, costas, barriga, peito, bunda, pés, cabeça, rosto e tudo mais, todo o corpo foi coberto por grossos pelos negros e brilhantes transformando Kanda Tala num ser horripilante e sem qualquer chance de ser confundido com um humano, junto com essa etapa da transformação veio um calor tão forte que ele rasgou o pouco de vestes que tinha sobre o corpo.

Sentir cada pelo saindo do corpo o levou a insanidade, ele não tinha mais controle sobre si, simplesmente gritava tamanho dor, debatia-se como um animal feroz que fora ferido, mas isso estava longe de acabar. Quando todo o corpo foi coberto por pelos foi a vez da reestruturação óssea ter início, o que automaticamente levou a uma expansão muscular, reorganização dos órgãos internos e elasticidade insana da pele, esse foi o ás na manga de todo o sofrimento, ultrapassou os limites do considerado insuportável, uivos, gritos, choro, sangue, lágrimas, gemidos eram ouvidos pelo ancião que selava a caverna, ele percebeu de imediato que tratava-se da transformação final.

Seu maxilar se deslocou e em seguida se destruiu num estalo grotesco e no mesmo instante transformou-se num meio termo entre um maxilar de homem e lobo, suas orelhas cresceram e ficaram pontudas, seu rosto inteiro estava maior quase do tamanho de um cavalo, seus ossos cresceram em meio aos gritos e pele rasgada, sangue fora espalhado em todas as direções, seus dentes ficaram o dobro do tamanho de um lobo de grande porte.

Suas unhas caíram no chão, empurradas por unhas animalescas, grossas, grandes e afiadas, lembravam navalhas feitas de ossos, mas ele tinha certeza de que eram muito mais resistentes. Sentiu cada uma delas se desenvolvendo, empurrando e depois rasgando seus dedos para tomar lugar das antigas, sua mão alongou-se enquanto seus dedos engrossavam, o tempo todo o corpo fervendo num calor infernal, cada osso que se partia e imediatamente era reconstruído, causava dor torturante, não há palavras que possam descrever tal atrocidade física, ter todos os sentidos elevados num momento em que seu corpo está passando por transformações bruscas é algo completamente diferente de qualquer nível de dor a que um humano já fora obrigado a passar.

 

 

O adversário de Kid adiantou-se.

- Seja bem vindo, filhote de lobo, minha mãe permitirá que a veja, se for digno de sua atenção - A voz do adversário era grossa e cheia de ódio. – Prepare seu corpo para sofrer como nunca antes.

O lupino ainda tentava se desvencilhar das lembranças de sua transformação, assim como na época em que passou por aquela maldita primeira noite, estava agora num estado de cansaço extremo, mal podia ficar de pé, mas já estava longe nessa nova jornada, não ia desistir.

Flexionou as pernas e preparou-se para enfrentar o inimigo e para seu desespero, suas lembranças encheram mais uma vez sua mente, e ele não conseguia mais discernir entre o que sua mente lhe mostrava e o que estava realmente a sua frente.

 

 

Já estava a um ponto de dor que parecia estar partindo seu corpo e mente ao meio, não conseguia mais controlar o corpo e passou a debater-se no chão, nas paredes e no teto da caverna, dava saltos alucinantes, se espatifava no teto e de volta ao chão e em meio a tudo isso veio o que lhe pareceu uma multiplicação de tudo o que já sentira até ali, sua coluna se espatifou e quando iniciou o processo de reconstrução, rasgou sua pele ao meio, elevando o tamanho do índio de aproximadamente um metro e sessenta para dois metros e meio de altura, seus músculos, nervos e veias tiveram melhor desempenho em acompanhar essa parte da transformação, apenas sua pele não conseguiu acompanhar o ritmo e ficou dividida na altura do peitoral dessa besta que tomava o corpo do garoto.

Era o estágio final da transformação e nesse momento, algo além do físico se manifestou, Kanda Tala foi tomado por vozes do além, seus olhos viram uma horda de inimigos a sua volta guinchando e sorrindo em meio a sua dor e desespero, era formas grotescas de humanoides, ele ainda não sabia, mas eram demônios que se alimentavam do desespero humano, tiveram um banquete e tanto até ali.

A mente do índio foi invadida com pedaços de histórias e conhecimento de sua origem, da origem dos Aldatu, ele ainda se debatia e colidia com toda a caverna, e agora cada batida causava rachaduras na pedra sólida, o corpo já estava completamente transformado, era uma criatura de quase três metros de altura, meio homem e meio lobo, corpo extremamente forte, com musculatura superdesenvolvida, orelhas pontudas e dentes que pareciam feitos de mármore, as garras nas "mãos" eram monstruosas e destrutivas, tinham a cor escura e era afiadas e fortes como espadas, uma máquina de destruição.

Finalmente parou, bem no centro da caverna, sua respiração ofegante e barulhenta, colocou-se numa posição de quatro no chão, palmas das mãos e pontas dos pés, garras cravadas no solo, tomou fôlego e uivou de forma estridente e aterrorizante, um uivo como o ancião fora da caverna jamais ouviu, um uivo tão ensurdecedor que ele teve medo, um medo que o consumiu, ele vacilou e desmaiou, foi o bastante para a magia enfraquecer, o animal preso na caverna sentiu a barreira se romper, investiu contra as pedras na entrada da caverna e destruiu a entrada, as pedras caíram sobre o ancião e ele foi esmagado.

A criatura sentiu o cheiro de sangue no ar, rosnou ameaçadoramente, farejou o ar e seus instintos aguçados lhe indicaram a direção que deveria seguir, em breve chegaria a aldeia onde crescera.

 

 

Kid entrou em transe, não sabia mais o que eram lembranças o que era atual, não sabia mais onde estava em por que estava, só via sangue e sentia dor, sentia-se acuado, e um animal acuado, pode causar muitos danos.