05 – Pequena Ana

 

Desde os primórdios dos tempos humanos, todos s outros seres da criação tentam compreender o que foi dado aos humanos, o que é efetivamente isso que eles chamam de alma e o que são exatamente esses sentimentos que nutrem uns pelos outros.

Os Anjos tem muito interesse nisso, afinal, o único tipo de amor que conhecem é de filho para com o Pai, o único tipo de ódio está ligado aos que são contra seu Pai e nada além disso eles sentem, não sabem o que é ciúmes, não sabem o que é inveja, não sabem o que é a gula e de certo não fazem ideia do que é o amor de um humano por outro, isso é completamente incompreensível para eles, estão acostumados com a ideia de amor entre irmãos, no máximo.

A história também lhes ensinou que aprender a lidar com os sentimentos humanos é perigoso, existem casos em que anjos abandonaram sua divindade para viver entre os homens, para amar e ser amado por um único ser por toda a eternidade.

Seres divinos só aprenderam o que era dor, quando lutaram a Batalha de Mil Dias, que definiu os Generais, só entenderam o que era tristeza quando Lúcifer e seus seguidores foram banidos dos céus, antes disso tudo que conheciam era, amor ao pai, aos irmãos e devoção ao seu criador, harmonia e alegria entre os seres celestes, o resto apenas sabem que existe por causa dos homens, mas nunca sentiram nada além do que Deus lhes permitiu conhecer ou foram forçados a conhecer.

Deus, em sua infinita sabedoria, lhes privou desses sentimentos, visto que o poder destrutivo que tem, somado aos desejos, anseios, angustias e tudo mais a que um homem está vinculado, levaria a batalhas sangrentas e sem sentido. Somente abandonando sua ligação com o divino, eles são capazes de se fazer humano e viver entre eles.

Todavia, os Arcanjos, no geral, são os que menos compreendem esses sentimentos mundanos, nunca lhes ocorreu que algo pudesse ser mais importante do que o amor que eles tem por seu Pai e saber que recebem isso de volta.

Mas Uriel, Mestre da Matéria, estava para descobrir esse sentimento.

Deus convocou os arcanjos para uma reunião no palácio celeste.

Todos estavam presentes, a muitos anos nenhum deles deixava o reino celeste, com exceção apenas de Mikael, Anjo do Guarda, que esporadicamente deixava a casa de Seu pai, para se juntar aos homens, cuidando daqueles que esperavam em Deus.

- Meus filhos – Disse Deus – Um dos humanos com vinculo divino nascerá nos próximos dias sob a terra e devo enviar um de vocês para guiar seus passos e proteger sua vida.

- Pai – Miguel adiantou-se – O Senhor nunca nos avisou antes do nascimento de um desses humanos, sempre fomos enviados quando já haviam escolhido o próprio caminho, porque enviará um de nós dessa vez, antes do que seria devido?

- Porque assim desejo – Disse – Essa deveria ser minha resposta e está é a verdade, mas também por saber que esse precisará mais de vocês do que podem supor agora, mesmo Ya-Hel não tem conhecimento de tudo que envolve a vida dessa menina que virá.

Os arcanjos entreolharam-se empertigados.

- Mas, dessa vez não irei decidir quem irá, vocês farão essa escolha, aquele que realmente deseja se destacar para essa tarefa, venha a mim agora.

Mikael olhou em volta, era o Anjo da Guarda e se era pra ser um deles, deveria ser ele, os outros pareciam pensar da mesma forma, mas antes que pudesse ir a frente, viu Uriel mexendo-se em direção ao Todo Poderoso. Ele ajoelhou-se diante de seu Pai.

- Muito bem então, meu filho, vá a casa dos homens, assim que chegar ao mundo deles saberá para onde ir.

Uriel levantou-se e com os outros arcanjos deixou o Salão Principal do Palácio Celeste, já do lado de fora despediu-se de seus irmãos e segui para o portão, seguido por Israel e Gabriel.

- Uriel – Gabriel voava a direita deste – Se não me falha a memória, já perdemos nove portais para Lúcifer, não sei o que ele planeja, ou se realmente planeja algo, mas peço que fique atento e se qualquer problema surgir destrua o portão, antes que ele seja levado.

- Sei disso Gabriel, não se preocupe, não darei a Lúcifer mais uma peça para seu jogo insano.

Gabriel olhou no fundo dos olhos de seu irmão e voltou para a cidade sem mais nada dizer.

- Ele nunca esquecerá os portais perdidos, não adianta. – Mikael olhava Gabriel se distanciar com um olhar triste.

- Sim, nunca ocorreu algo do tipo quando ele estava de guarda, seu poder titânico tende a matar o portal antes que possa ser pego – Uriel fitava triste o irmão, sabia que ele detestava fazer mal aos homens, mas em se falando de seguir a risca uma ordem divina, nenhum deles levava tudo ao pé da letra como Gabriel, ele nem titubeava, apenas cumpria a ordem, doa a quem doer.

Chegaram ao portal e despediram-se também, Uriel cruzou o portal e assim que chegou a terra conteve um tsunami formado pela simples presença do arcanjo ali, selou seu poder e o manto negro surgiu em suas costas.

Sempre que vinha a terra seu primeiro ato era o de respirar, não tinha exatamente órgãos internos, apenas a estrutura física e muscular semelhante a dos humanos, ou na verdade seriam os humanos semelhantes a eles, já que os anjos vieram primeiro, mas gostava de sentir o corpo se enchendo com o sopro que permitia vida aos homens, estava entre as nuvens, alto nos céus, abaixo dele azul para todos os lados. Estava sobre Oceano Pacífico, seus sentidos lhe dizendo para seguir em direção ao Brasil, não visitava aquela terra desde que apenas índios viviam lá, não fazia ideia do que encontrar.

 

 

Dona Rosana despertou, sua barriga pesando para o lado, sentia-se como uma porca ou uma tartaruga de barriga para cima todas as manhãs, seu barrigão indicando gestação já em estágio final, com aproximadamente trinta e sete semanas estava dando muito trabalho.

Rolou um pouco de um lado para o outro, até conseguir, com a ajuda do Seu Juvas, sentar-se na cama e finalmente se colocar de pé, seguida de perto pelo marido, chegaram a cozinha da pequena e bagunçada casa, um local muito simples, fogão quatro bocas azul claro, geladeira azul clara, armários azul claro, mesa de madeira branca e quatro cadeiras, pia e micro-ondas, nada mais de utensílio doméstico havia ali. Olharam ambos para a parede oposta a entrada, onde ficavam, pia, fogão e geladeira, acima da geladeira estava o relógio de parede que indicava cinco e meia da manhã.

- Sério gata, temos que sair dessa vida de assalariado, “num guento” mais acordar essa hora todo dia – Disse Juvas em tom de brincadeira

- Quer trocar comigo, seu safado, vou trabalhar e tu fica aqui rolando pela casa e se preparando para parir essa menina pesada?

- Isso não tem nada a ver com a conversa, to reclamando de acordar cedo, não vem não

Ambos riram um pouco, Rosana sentou-se a mesa, juntou as mãos e começou a orar enquanto seu Juvas ia preparando o café da manhã.

Ela orava agradecendo a Deus por mais um dia de vida, pela saúde de sua família e amigos, pelo novo dia que se colocava a sua frente e pela benção da gravidez, era uma mulher de quase quarenta anos e não tinha filhos, casada a quinze anos já estavam pensando em adotar um quando Deus lhes permitiu ter seu próprio filho, saído de seu ventre. Seria chamada, Ana, filha da promessa como costumava dizer.

Terminaram de comer, Seu Juvas trocou-se e as seis da manhã estava na rua, em direção ao ponto de ônibus para iniciar o trajeto de três horas até o local de trabalho, só estaria de volta ao lar por volta das vinte e duas horas.

Dona Rosana voltou para o quarto e pensou em dormir mais um pouco, mas o calor era sufocante e ela não conseguiu nem deitar novamente na cama.

Olhou em volta do pequeno quarto e se deu conta, pela milésima vez, de como ficaria apertado com sua princesinha por perto, sorriu, era uma daquelas pessoas que tem pouco, mas que sabe o valor de cada coisa que tinha, do suor envolvido, das discussões, dos erros e acertos que faziam daquele lugar pequeno e simples, seu lar, seu lugar ao sol.

Arrumou a cama e guardou as roupas de dormir no guarda roupas, separou as que havia retirado do varal na noite anterior, sua prioridade naquele dia era passar tudo aquilo, a maioria de sua princesinha.

Voltou a cozinha e o sol da manhã começava a deixar o ambiente bem iluminado, morava nas favelas do Capão Redondo, desde criança era seu lar, por sorte sua casa (não era um barraco de madeira, apenas uma casa simples de tijolos) ficava no topo de um dos morros e toda manhã ela era abençoada com sol vindo a sua direita, iluminava a cozinha, depois a sala e por fim o quarto, da Janela da cozinha conseguia ver o nascer do sol e da janela do quarto o por do sol, mais um dos motivos que fazia daquela construção pequenina, seu pedacinho do céu.

 

 

Uriel chegou as favelas do Capão Redondo sentindo um poder e benignidade além de tudo que já tinha visto no ambiente humano, seguiu seus instintos como Deus lhe dissera e, antes do sol nascer, estava tão próximo da fonte de poder que sentia-se muito bem, como se mais angelicais estivessem em paz nas redondezas, e foi bem esse o quadro que viu.

Foi recebido por um anjo chamado Guy, disse ser o responsável pela região e sabia bem o que o arcanjo estava fazendo ali, já esperava que alguém viesse investigar.

Mais anjos sobrevoavam a área e os poucos demônios que estavam na região não sentiam-se nada bem ali, havia algo errado naquela favela, não era o tipo de lugar para anjos sentirem-se a vontade. Infelizmente tantos jovens dobram-se as forças demoníacas nesses locais que normalmente o quadro é bem contrário, mais anjos que demônios dominam o local.

O Arcanjo segui em direção a uma casa, na parte mais alta em um dos morros, e entrou, uma mulher e homem estavam levantando-se de sua cama, logo percebeu que eram boas pessoas, conversaram descontraídos sem saber da presença que ali estava, o homem foi trabalhar e ficaram apenas Uriel e a mulher.

Este olhava com interesse, sentia um poder grandioso no ventre da mulher, sentia algo tremendo ali, sentia o amor que fluía daquele ser que provavelmente não tinha consciência alguma de sua própria existência. Imaginou quão poderoso seria esse ser quando, por vontade própria decidisse seguir a Deus, duvidava que não fosse o caso.

Permaneceu próximo a este casal, certificando-se de que estava tudo indo bem, as ultimas semanas de gestação passaram sem problema algum e finalmente chegou o grande dia, tudo agendado e preparado para o parto.

Dona Rosana acordou cedo, preparou as malas e por volta das oito da manhã deixaram a favela para trás, sob o olhar alegre de muitos colegas do morro, todos esperando o nascimento dessa benção de Deus na vida da Dona Rosa e do Seu Juvas, muito queridos por todos que os conheciam.

Desceram o morro e foram até o ponto de ônibus, ainda não conseguiram comprar um carro para si, e de toda forma nem havia onde guardar, então não era prioridade para eles. Depois de alguns minutos veio o ônibus que os deixariam na estação de Metrô Capão Redondo, e de lá iriam para o Hospital São Luiz do Itaim, na Avenida Santo Amaro.

Uriel seguia de perto, olhos apreensivos, esse sentimento era um tanto novo para ele, estava, ansioso pelo que podia entender da natureza do sentimento, tinha ideias sobre como seria a menina fisicamente, espiritualmente e seu caráter, criara nessas ultimas duas semanas um tipo de vinculo com a família, a simplicidade com a qual viviam e a felicidade de todo o momento, deixara o Arcanjo tanto intrigado quanto esperançoso, por vezes parecia que os homens não tinham mais a capacidade de se ligar com o Pai, mas aquela família era diferente, e se existe uma família assim, a esperança lhe fazia acreditar que existiam mais.

Levaram cerca uma hora e meia para completar o trajeto, chegaram ao hospital sem nenhuma complicação, a Cesária estava agendada para as 14:00, era por volta de 10:00 quando foram atendidos e destinados ao quarto vago que lhes correspondia.  O contingente angelical em hospitais geralmente é alto, ajudam a acalmar os ânimos entre os médicos para que seu serviço seja bem feito, e fazem o possível para que os demônios não atrapalhem durante procedimentos de alto risco, não podem curar, deixam que aqueles que estudaram para isso façam seu papel, mas garantem que não haja intervenção externa no processo.

Perto do horário da cirurgia, porém alguns demônios passaram a sobrevoar o local, talvez curiosos quanto a presença de um arcanjo na região, não havia como não sentir isso.

 

 

Um demônio que estava seguindo os passos de Uriel desde que chegara ao mundo humano, saio das sombras, malicioso e astuto, no corredor do hospital, sorrindo com desdém enquanto o Uriel acompanhava o deslocamento de Rosana para o centro cirúrgico, Uriel lançou lhe um olhar furioso, mas seguiu em frente, dois dos anjos guardiões do hospital seguiram os Uriel, a seu pedido iam reforçar as defesas do centro cirúrgico. Dois anjos estavam do lado de dentro da sala para onde Rosana, Juvas e a pequenina Ana que chegaria em breve foram levados. Uriel também estava lá.

 

 

- Geralmente não nos interessamos pelo nascimento de humanos, não valem nada para nós enquanto não afrontarem a graça de Deus – Disse um demônio pequeno e gordo – Mas com tanta proteção a de se esperar que algo importante esteja acontecendo.

Outros quatro demônios em volta concordaram maliciosamente.

- Vamos possuir ao menos um dos médicos daquele andar, causaremos bagunça do lado de fora para distraí-los e assim que o maldito arcanjo vier para a confusão, vamos matar aquela família.

Todos concordaram gargalhando.

- Sabem o que fazer, agora vão!

 

 

A cirurgia havia começado, Rosana foi sedada como de costume nessas operações, os médicos aguardaram, conferiram se estava tudo bem com a moça e se realmente não estava sentindo nada, Rosana acalmou-se o máximo que pode, desde a hora em que acordou sentia que algo não estava bem e isso a deixou muito nervosa, queria apenas segurar sua filhinha o quanto antes.

Uriel ficou ao lado do cirurgião, acompanhando tudo, assim que o corte pouco abaixo da linha abdominal foi feito e o típico cheiro de carne queimada subiu, ouviu um estrondo do lado de fora que fez a mão do médico tremer, por sorte, o laser de corte já estava desativado, do contrário teria feito um corte grande na paciente.

- Mas que porra é essa? – Disse o médico com os olhos arregalados e olhou para a assistente que percebeu o perigo que acabou de correr a paciente. – Vamos terminar logo.

Juvas estava ainda mais nervoso, sua esposa então, quase apagou, ficaram juntos orando baixinho.

Uma luta entre anjos e demônios iniciou-se do lado de fora, três Anjos Negros entraram no centro cirúrgico e os dois anjos que estavam de guarda foram enfrenta-los. As luzes do centro cirúrgico falharam algumas vezes e os equipamentos piscaram e apitaram, voltando ao normal em seguida. O médico ficou nervoso, o abdômen estava aberto, as camadas de pele e gordura já foram vencidas, não dava pra voltar atrás, a menina precisava nascer, e rápido. Uriel não conseguia decidir e melhor solução para o impasse, se saísse mataria os anjos negros e demônios em segundos, mas poderiam ser os segundos necessários pra algo terrível acontecer ali, não podia permitir isso.

Mais um estrondo, dessa vez muito maior foi ouvido na rua, como algo explodindo, todo o centro cirúrgico tremeu, bebes recém-nascidos chorando, mães, pais, parentes, todos assustados, aquilo precisava acabar. A contragosto Uriel deixou a sala de cirurgia, destruiu os três anjos negros no centro cirúrgico e foi subindo, varrendo os andares em segundos, assegurando-se que não havia mais perigo para trás, foi seguido pelo contingente de anjos do local e poucos segundos depois estava nos céus, ao menos cem anjos negros com espadas prontas para a batalha, dezenas deles já estavam se desfazendo, morrendo, assim como muitos anjos celestes.

Uriel expandiu seu poder ao máximo, e assim que conjurou sua lança todos os anjos negros e demônios fugiram do campo de batalha.

 

 

Assim que a confusão começou um médico que estava no centro cirúrgico, a três salas de distancia de onde Uriel estava, sorriu de forma maliciosa, continuou ali, calmo e sereno da melhor maneira possível, apenas fazendo seu trabalho, viu os anjos negros lutando com os celestes e por fim viu Uriel passando a todo vapor pelos corredores, era sua deixa.

O demônio que possuiu o médico, correu para fora da sala, deixando a mulher com o abdome aberto na mesa de operações e seu marido aos berros. Correu até a sala onde estava Rosana, sentiu a presença espiritual benéfica que vinha da criança que acabara de nascer e estava nos braços de seu pai, primeiro matou a ajudante, bisturi rápido e preciso na garganta, o cirurgião veio para segurar o homem e foi o segundo a morrer, o anestesista desmaiou com o que acabara de ver, a mãe ainda estava sendo “fechada” e perdia sangue já que o cirurgião interrompeu o trabalho. O demônio se aproximou dela e enfiou toda a mão em seu abdômen destruindo tudo por dentro, então retirou a mão coberta de sangue de seu corpo inerte. Juvas segurava a pequena Ana nas mãos, lágrimas escorrendo de seus olhos, orava baixinho, falava com Deus, pedindo livramento, mas o livramento não veio, viu o médico a sua frente levantar a mão com o bisturi e virou-se de costas ao que o demônio rasgou-a do começo ao fim e Juvas caiu ajoelhado, ainda segurando sua pequena Ana.

O demônio preparava-se para dar um ultimo golpe no homem quando sentiu a presença do arcanjo, tentou sair do corpo do médico, mas não teve tempo, a lança de Uriel, feriu o corpo do homem e destruiu o demônio em centenas de partículas.

 

 

Uriel percebeu seu erro no mesmo instante, desceu em velocidade alucinante até o setor do centro cirúrgico, aparecendo exatamente no meio da sala, viu um humano possuído a ponto de matar Juvas e Ana e não pensou duas vezes, com a lança em sua mão matou o homem e destruiu o demônio a sua frente. Ficou parado alguns segundos depois do golpe percebendo o que acabara de fazer, nunca antes havia matado um humano dessa forma, sempre tirava o demônio do corpo do humano, mas dessa vez viu seu corpo apenas movendo-se.

Juvas estava morto, sua alma já se desprendera do corpo, Uriel estava perplexo com sua incompetência, os pais do portal mortos e um bebe recém nascido que precisa de toda proteção do mundo estava ali, coberto com o sangue de seu pai.

Uriel materializou um corpo semelhante a de um homem de vinte e poucos anos para si, tomou Ana nos braços e saiu do hospital, pessoas corriam em todas as direções, gritando e chorando, ninguém lhe dava atenção.

Já do lado de fora usou seus poderes para deslocar-se em velocidade incrível, ainda não sabia para onde iria, mas colocaria sua essência em risco para garantir a sobrevivência e segurança desse portal. Usar um corpo artificial selava ainda mais seus poderes, se encontrasse muitos inimigos teria problemas, mas uma vantagem de andar assim é justamente facilitar a esconder sua presença, pensando nisso talvez devesse ter feito isso desde o começo.

Fez a única coisa que lhe parecia adequada e correu sem parar até a região serrana mais próxima, ficaria na mata até ter certeza de que não estava sendo seguido por qualquer ser que fosse. Levou cerca de uma hora pra entrar no terreno que queria, segui em direção ao mar e quando sentiu-se completamente só parou para olhar a pequenina, assim que olhou percebeu que ela estava encolhida e um tanto gelada, quase perdeu os sentidos, como fora idiota, humanos estão sujeitos as variações de temperatura do planeta, obrigou a floresta a sua volta a se reconfigurar para fechar um circulo, conjurou fogo e fez uma fogueira no centro dessa clareira.

O corpo artificial tinha um pouco de sensibilidade as coisas terrenas e sentiu o calor do fogo chegando até ele, tocou uma arvore próxima e esse foi transformando-se em uma pequena cabana de madeira, de mais ou menos dois metros de altura, dois de largura e dois de profundidade, não era nenhuma mega construção, mas era suficiente. Tomou alguns galhos de outra árvore e jogou no centro da cabana, estendeu as mãos na direção dos galhos e estes se transformaram em um pequeno berço, o arcanjo ainda apenas movimentando as mãos, fez com que fosse preenchido com terra, depois concentrou-se o máximo que pode a procura de Cânhamo, Juta ou Sisal, precisaria dessas ervas para produzir tecido, demorou mas reuniu o suficiente para fazer um algo para afofar o berço e cobrir a menina.

Colocou-a no berço e pela primeira vez teve tempo de verdade para olhar para ela, pequenina, indefesa e mesmo assim tão poderosa, olhos do corpo artificial viam a pequenina respirando aos poucos, sofrendo com esse novo mundo, o arcanjo via o poder espiritual, crescendo a cada segundo naquele corpo que nada compreendia.

Enquanto olhava teve seu primeiro momento de terror cuidando de uma criança, ela desatou a chorar, tinha a impressão de que a quilômetros e quilômetros de distancia seria possível ouvir seu choro, olhou fixamente para a menina e ela adormeceu, com seus olhos celestes esquadrinhou cada pedacinho dela a procura de problemas e certificou-se de que ela estava saudável, percebeu que seu corpo parecia pedir por suprimento, lembrou-se de outras vezes que estivera no mundo dos homens e lembrou-se que as mães dão de mamar a seus filhos, um conjunto de substancias que são processadas pelo corpo e liberadas pelos seios, nunca viu um homem com seios, então achava que não deveria ser esse o caso dele, mas sabia o que produzir para alimentar sua Ana, foi a primeira vez que o pensamento lhe ocorreu, essa era sua Ana, ela dependia dele para tudo e ele faria tudo para não decepciona-la.

Forçou seu corpo a produzir as substâncias necessárias e da ponta de seu dedo começou a minar leite, ele permitiu que Ana acordasse e colocou o dedo em sua boca, ela ficou ali, sugando o leite por alguns minutos, cansou e adormeceu novamente.

As coisas seguiram assim por mais quatro semanas, e quando Ana estava para completar um mês de vida, Uriel decidiu que era hora de sair dali e dar a Ana a chance de viver uma vida o mais normal que pudesse.

Seguiu em direção a cidade costeira mais próxima e chegando lá teve de fazer algo que lhe pareceu muito errado, convenceu um jovem a lhe entregar a roupa, já que todo esse tempo ele estava nu, após vestir-se fez outra coisa que lhe pareceu errado, obrigou o jovem a compartilhar com ele todo o conhecimento que tinha adquirido até ali, o rapaz tinha vinte anos de idade, cursava medicina em uma faculdade da região. Entre tantas informações adquiridas, Uriel percebeu que precisava de identificação, para si e para Ana. Passou os próximos dias na casa desse jovem, que morava sozinho, conseguiu as tais identificações necessárias, uma certidão de nascimento para Ana e um RG e CPF para si próprio, eram agora Jack da Silva e Ana da Silva, irmãos cujos pais foram mortos, conseguiu essas identificações com contrabandistas da região, outra coisa que Uriel tinha certeza de que não deveria fazer.

Os próximos anos foram tranquilos, quando Ana tinha sete anos de idade foi a primeira vez que viu a verdadeira forma de Uriel, este lhe explicou um sobre o mundo sobrenatural, sabendo que a partir dali ela provavelmente veria muitos seres, celestes e outros.

Aos dez anos, já mais instruída, ela lhe perguntou o que ele realmente era dela e onde estavam seus pais. Foi a primeira vez que Uriel sentiu vergonha, sentimento complicado de lidar e ele mal conseguiu lhe contar tudo sobre a morte dos pais, sobre o que ele era dela e tudo o mais ocorrido desde que foi designado para protege-la. Ana frequentou escolas, assistiu desenhos e fez tudo o que uma criança deveria fazer. Uriel, quando precisava de dinheiro para fazer algo, simplesmente transformava minérios de algum lugar em ouro, prata ou pedras preciosas e vendia em locais específicos, junto recursos para manter sua vida com sua pequenina em ordem.

Ana ia a igreja toda semana, desde que se entende por gente, Uriel nunca a forçou, mas certa vez, com pouco mais de sete anos, passeando nas ruas de Santos com Uriel, passaram em frente a uma igreja, já passaram por ali diversas vezes, mas dessa vez foi diferente, havia uma verdadeira festa de anjos lá e agora Ana podia vê-los.

Uriel manteve os olhos ligados a Ana, ela foi até a porta da igreja e uma das fieis percebeu o poder que vinha com ela, ambas conversaram muito naquela noite e dali em diante Ana passou a frequentar, muitas igrejas na região, nunca ia direto a mesma igreja, gostava de ver coisas novas todas as vezes que ia. Aos doze anos porém, passou um bom tempo em uma igreja pequena para lá da rodovia, perto dos morros cerrados, igreja pequena, de gente simples, ali aceitou Jesus como seu salvador e uma verdadeira festa angelical ocorreu lá.

Uriel assistiu boquiaberto, um recipiente ser cheio com tanto poder e graça divina que era inimaginável que um humano pudesse contê-lo.

Ana percebeu o que havia acontecido em sua vida e dali pra frente, junto com Uriel, passaram a viver mais afastados, parecia que junto com o poder veio a consciência de que ela seria perseguida pelos inimigos de Deus, os infernais.

Passaram a viajar pelo mundo, ficando não mais de um mês em cada cidade por onde passavam, Uriel já sentia-se praticamente humano e partilhava de muitos sentimentos que um angelical jamais deveria sentir. Passou a sentir algo novo quando Ana completou seu décimo sexto aniversário. Já era uma moça de corpo esguio e provocante, a vida de viajante lhe ensinou muito sobre os homens, nunca estivera com nenhum e na verdade não tinha interesse algum nessas coisas, mas via e ouvia aqui e ali tudo que as meninas conseguiam dos homens, pura a simplesmente se fazendo de meninas fáceis perto deles, era de certa forma patético, e ela viu centenas de homens caindo nos mesmos truques, todos eles, exceto aquele com quem ela andava, exceto seu protetor, Jack, ou Uriel, para ela tanto faz, tudo que ela sabia é que ele era um homem como nenhum outro jamais seria.

Em várias ocasiões Ana percebeu Uriel olhando suas curvas e ela mesma fazia questão de mostrar o que podia, Uriel por vezes sentia que não seria capaz de controlar os desejos que seu corpo tinha por Ana, e passou boa parte do tempo em sua forma angelical, sem o corpo, sem o instrumento de sentimentos desorganizados e incontroláveis tomando cada força que tinha.

Esse sentimento mútuo se desenvolveu com força nos próximos meses e ambos percebiam que não havia mais o que ser feito, Uriel já cogitava a possibilidade de trocar de lugar com outro Arcanjo, mas nesse momento experimentou outro sentimento humano, o ciúmes, a simples ideia de deixar sua Ana nas mãos de outro protetor era completamente absurda, não se perdoava sequer por pensar nisso.

Uriel ainda não sabia, mas o fato de se colocar na condição angelical tantas vezes nos últimos meses havia, novamente, chamado atenção dos Infernais, desta vez mais cientes do que se passava.