18 – Peregrinos da Alvorada

 

Assim que Gustavo saiu da loja o velho fez um movimento com as mãos e fechou o estabelecimento.

Estava nos fundos da loja, um cômodo apertado e mal organizado, uma tapeçaria cobria toda a parede a direita da entrada, o velho aproximou-se da tapeçaria, tocou-a com a mão direita e recitou um encantamento.

 

Eu, Ravn, Líder dos Peregrinos da Alvorada e Pupilo do Merliniano, ordeno a ti que me mostre meus irmãos.

 

A tapeçaria sacudiu enviando poeira para cima do mago ancião, ficou ondulando por alguns instantes e por fim mostrou quatro quadros distintos, como se fossem televisores, em dois deles haviam pessoas, uma mulher em cada um, o terceiro que ficava na segunda linha, primeira coluna e o da primeira linha segunda coluna estavam vazios.

- O que quer de mim velhote? - A mulher que falava era indígena, lembrava em muito as índias lindas e decididas que participavam dos filmes do velho oeste americano.

- Boa tarde Shamira e Ynara, bom vê-las com saúde. Sabem onde estão Melissa e Franco?

Ynara suspirou fundo.

- Mortos, estavam no Egito, tinham me dito que encontraram Liber Amon Rá e estavam voltando para casa, viveram juntos os dois últimos séculos, desde que nosso grupo se desfez. – Fez uma pausa enchendo-se de lembranças de um tempo de batalhas constantes onde os que trabalhavam pelo bem, eram caçados por miríades de inimigos e a maioria acabou se dispersando a fim de viver no anonimato. – Ficaram muito tempo sem dar notícias, então fomos eu e minha irmã investigar, encontramos vestígios de uma batalha sangrenta e cruel, entidades mitológicas estavam mortas por toda parte, encontramos vestígios de bestas das trevas também, marcas de Cérbero, Belzebu, Serpentis e Alados, não sabemos se eles conseguiram salvar o livro, mas no final conseguimos encontrar pedaços de seus corpos.

O velho considerou as palavras por algum tempo, lágrimas escorrendo por sua face.

- Ficamos muito tempo afastados, sinto muito por isso, nossa covardia nos custou a vida deles.

- Não ouse questionar minha coragem – Rugiu Ynara.

- Calma irmã – Disse Shamira – Por mais que as palavras sejam duras, elas representam a verdade, deveríamos ter nos mantido unido, melhor seria morrermos todos juntos, Joel sempre dizia isso, sua morte deve ter sido triste, afinal morrera sozinho também.

- O que quer de mim? – Repetiu Ynara em meio a lágrimas.

- Meu pequeno veio me procurar hoje, um dos arcanjos estava com ele. – Ynara e Shamira ficaram espantadas – Não, ele não é um portal, tenho certeza disso, mas pelo pouco que conversamos entendo que ele foi chamado para um batalha que se aproxima...ele...ele ainda não esta pronto pra isso! – Declarou por fim - Mal consegue usar sete runas num dia, não tem o conhecimento necessário, não tem a convicção necessária, nem era capaz de ver o ser celeste que com ele estava. – Parou por um instante retomando a compostura - Para um arcanjo, mesmo com manto negro, estar com ele, é sinal de que a batalha será difícil. Só quero saber se uma de vocês chegou a ser tocada pelos celestes.

- Ouvi alguns murmúrios sobre uma grande batalha, mais entre os infernais do que entre os celestes, não creio que eles estejam cientes do que está para acontecer. – Shamira era uma iluminada, a mesma que esteve na luta pela vida de Julius.

- Entendo. – A mente do ancião trabalhava rápido. – Vocês recolheram algo do local de morte de nossos irmãos?

- Tudo, ainda estamos tentando rastrear Liber Amon Rá, é a ultima defesa de um mago contra bruxos poderosos. Acreditamos que esteja nas mãos de um dos alunos de Morgana, ninguém além de Merlin e a própria Morgana tem poder para destruir o livro de Liath ou o Liber Amon Rá, podemos e devemos recuperá-lo.

- Ia dizer exatamente isso, se eles o pegaram podemos conseguir recuperá-lo, sou mais poderoso que Melissa e vocês duas superam a força de Franco. Se não se incomodam farei a travessia agora mesmo. Quem está mais perto do local onde eles morreram?

- Eu – Disse Shamira – Encontramos os corpos próximo do local onde eles estavam morando, ao sul da Dinamarca, um local bem isolado, pode pegar Ynara e vir para cá.

O velho concordou e virou-se para Ynara.

- Poderia me tele transportar, mas não tenho certeza de onde está e poderia me perder no meio mundo, então vamos usar o espelho. Ainda tem o espelho?

- Sim, vou tirá-lo da caixa.

Ynara desapareceu da tapeçaria e voltou em seguida, com um espelho circular, desse que as damas de antigamente usavam para verificar o efeito da maquiagem sobre o rosto.

Ravn virou-se para a parede a esquerda, foi até lá e pegou um espelho idêntico ao que Ynara tinha em mãos. Tocou o espelho com a ponta dos dedos enquanto recitava um encantamento, no instante seguinte estava ao lado de Ynara. Nem deixou ela se arrumar e segurou a mão dela, Shamira já havia preparado o espelho que estava em seu poder e no instante seguinte estavam os três lado a lado, como a mais de duzentos anos atrás, prontos a enfrentar o que viesse, sem medo ou arrependimento, prontos para fazer cumprir suas obrigações para com aqueles que não têm poder para se defender.

- O menino é tão importante assim que resolveu deixar a aposentadoria? – Perguntou Shamira.

- Dei a minha vida a ele, ele ainda não sabe, mas já o fiz.

Ynara olhou para o velho, lembrava-se de um homem muito mais forte e decidido, estava claro que ele tinha deixado o tempo lhe consumir aos poucos, estava morrendo.

- Vamos começar logo com isso. – Ynara nem se incomodava em mostrar alguma empatia pelo velho ou por seus problemas.

Shamira lançou um olhar furioso a irmã e por fim sentou-se no chão de onde estavam, o velho fez o mesmo e depois a própria Ynara.

- Devemos proteger o local antes de fazer isso, se formos atacados agora não teremos como nos defender. – Ynara parecia um tanto desconfortável com o que se seguiria.

- Minha casa é bem guardada, ninguém pode encontrá-la a menos que eu queira que encontre, não se preocupe irmãzinha.

Todos deram um sorriso meio nervoso e depois ficaram em silencio absoluto. Estenderam a mão direita à frente do corpo e fizeram um corte deixando que um pouco de sangue caísse no chão, o velho usou o sangue derramado para desenhar um símbolo antigo, entoou um cântico estranho e bateu no símbolo com a palma da mão cheia de sangue, neste momento tudo parou, respiração, batimentos cardíacos, o próprio sangue não corria mais pelo corpo de nenhum dos três.

A mente do velho vagou por eras sem fim, vagou pelas lembranças de Ynara e de Shamira, em velocidade alucinante de forma que ele não podia ver muito do que se passava, passou alguns minutos nesse estado até encontrar a lembrança que queria, vasculhou o local da morte de seus amigos novamente, tocou os objetos e foi adquirindo deles as “lembranças”, uma impressão do que ocorreu ali. Viu os amigos sendo emboscados por um bruxo encapuzado, demônios cumprindo suas ordens, três Belzebus, dois Cérbero, um Alado, um monstro que me muito lembra um dragão, corpo serpenteante, asas enormes e dentes afiados como navalhas, porém as asas eram obviamente de morcego e o corpo parecia de um lagarto superdesenvolvido, e um Serpentis um mostro de quatro metros de altura, rápido e mortal, sua pele é de uma cobra, a boca aperta revela uma língua bifurcada, parece o cruzamento de uma anaconda com um homem, esses monstros foram conjurados e partiram sedentos de sangue e dor para cima de Melissa e Franco.

Viu todos os monstros infernais sendo derrotados, mas deixando os dois em estado precário, quando pretendiam partir contra o Bruxo foram surpreendidos por um Troll e dois Filhos de Gaia do Totem dos felinos, o Troll tinha dois metros e meio de altura e uma força descomunal, não parava de arremessar pedras enormes contra os dois, os filhos de Gaia, um tigre e uma pantera, faziam estragos com ataques rápidos e precisos, levaram poucos segundos para fazer com que os escudos não funcionassem mais. Então os três atacaram de uma vez, Franco se colocou a frente retirando uma adaga de dentro do sobretudo sob olhar aterrorizado de Melissa, Franco cravou a adaga no peito em meio a um encantamento, houve uma grande explosão que matou os dois filhos de Gaia e o Troll e ainda o próprio Franco.

Melissa levantou-se chorando tentou um tele transporte, mas não teve sucesso, o local fora com certeza bloqueado para esse tipo de truque, preparava-se para fugir correndo quando foi atingida por uma lança que lhe atravessou o peito, ela bambeou um instante e por fim caiu de joelhos tentando não perder a consciência. O bruxo aproximou-se dela e segurou seu queixo, fez com que ela olhasse para cima e visse seu rosto.

- Procurei esse livro por centenas de anos Melissa, obrigado, ficarei com ele e assim vou garantir que ninguém se torne mais poderoso do que eu.

- V...V....Vladmir... – Disse em seu ultimo suspiro de vida.

Neste ponto todos voltaram a sala, Shamira, Ynara e o velho, completamente atordoados com o que acabaram de ver.

Ynara perdeu o controle e transformou-se num grande Urso Guerreiro, desferindo golpes em todos os objetos da sala onde estava sob gritos de protesto de Shamira, o mago balançou as mãos e fez com que Ynara levitasse de forma que ela não conseguia acertar mais nada, mas mesmo assim não parava de desferir golpes violentos. Ficou nesse estado por alguns minutos e finalmente voltou a forma humana ainda muito perturbada.

- Devíamos tê-lo matado quando tivemos a chance – Rugiu dirigindo-se a Ravn - Mas não, o velho tolo achava que ele ainda seria um de nós.

O velho deixou-se cair de joelhos, colocou as mãos sobre o rosto e começou a chorar. Ynara deteve-se sob mais um olhar furioso de Shamira.

Ficaram em silêncio por alguns minutos, intermináveis minutos onde Ravn lembrava-se de seu primeiro aluno, seu primeiro pupilo, filho de seu sangue.

- Desculpe Ravn, não quis dizer isso, não é culpa sua, todos concordamos em dar a ele uma chance - Suspirou - infelizmente devo dizer.

- Você tem razão, desde que ele nos abandonou eu sabia do risco e mesmo assim deixei que ele partisse, jurei nunca mais ter um pupilo, nunca mais ensinar os segredos da magia a ninguém – Fez uma pausa enquanto se colocava de pé – Errei com ele, como mestre e como - forçou-se a dizer – pai.- Ynara e Shamira não tinham conhecimento disto, olharam com espanto e um quê de compreensão, estava ai o motivo para tê-lo protegido -  Não cumpri minha promessa e acabei me permitindo ter um novo aluno, preciso reparar meu erro primeiro, precisamos encontrar Vladimir, tomar o livro de suas mãos e matá-lo.

Fez uma pausa tentando absorver e solidificar a ideia em sua mente, matar seu filho, por mais desastrosos e doloroso que fosse, era sua obrigação.

- A ultima moradia conhecida dele foi em Zimbabue, nos arredores de Gutu, acho que devemos ir até lá, vou deixar que me vejam e servir de isca, teremos nossa vingança mesmo que isso custe minha vida.

- Onde nós estamos agora Shamira? – Perguntou Ynara.

- Londres.

- Como iremos para lá? Um tele transporte com todos nós será o seu fim.

- Vamos de avião, o voo até lá deve levar cerca de dez horas, quando chegarmos lá vamos nos separar e procurar informações sobre Vladmir, devem haver muitos inimigos dele por lá, ele nunca faz amigos.

Shamira indicou a saída, subindo uma escada, estavam no porão, o andar superior era muito bonito. Uma grande sala de estar, cheia de pufs e um grande televisor preso a parede, a direita um arco indicava a cozinha e a esquerda havia uma sala de jantar e depois da sala uma escadaria que dava para o andar superior, onde ficavam os quartos.

Shamira sentou-se em um dos pufs e pegou um Ipad, conectou-se com a internet e procurou um voo direto para Zimbábue. Eram por volta de três da tarde em Londres, o próximo voo para lá só sairia na parte da manha do dia seguinte, não havia voo para lá todos os dias.

Shamira comprou as passagens usando “pseudônimos”, Ravn decidiu ir até a rua caminhar um pouco e pensar sobre tudo que estava ocorrendo, ainda na sala conjurou uma roupa que simplesmente estava em seu corpo.

- Tem runas ativas?

- Sim, sempre que acordo ativo algumas para facilitar o dia de trabalho – Disse sorrindo – Deixa meu corpo cansado, mas vale a pena. Quer algo para vestir Ynara?

- Não se preocupe comigo velho, a menos é claro que uma mulher nua seja demais para seu coração. - Ravn ficou vermelho e sem fala, Ynara e Shamira caíram na gargalhada, por fim o velho conjurou um manto e Ynara cobriu o corpo perfeito. Passaram a noite falando de tempos antigos, quando o grupo era composto por quatro pessoas dispostas a fazer tudo que podiam para parar as hordas do mal, um tempo em que eram um grupo forte e uma família feliz, saudades e nostalgia eram os sentimentos da vez.

Despertaram no dia seguinte e rapidamente se aprontaram para partir, chegaram ao aeroporto por volta das sete da manha, o voo se daria as oito, fizeram os procedimentos para embarque e ficaram esperando na ante sala de embarque, nada de anormal até ali, apenas um grupo viajando, decidiram não se apresentar como amigos, cada qual viajando em cadeiras separadas.

Fizeram a viagem para Zimbábue, chegaram lá no fim do dia por volta das seis da tarde. Descobriram ali que não havia voos convencionais para Gutu e contrataram aviões em três horários diferentes para levá-los até lá na manha do dia seguinte, alugaram quartos separados e pernoitaram perto do aeroporto.

Em Gutu partiram em busca de informações sobre Vladmir, procuraram em bares, casas noturnas e locais de grandes eventos, não havia muito por ali, mas tinham que continuar. Ynara foi até as savanas em volta da cidade, procurando sinais de intervenção humana nos animais. Percebeu que alguns leopardos e macacos tiveram a mente invadida, deviam ter sido usados para monitorar algum perímetro para um bruxo. Ficaram três dias indo e vindo em todas as direções, separadamente, reunindo-se a noite apenas para trocar informações com segurança, estavam evitando o uso demasiado de seus dons a fim de não atrair atenção de outros seres que ali estivessem. Três dias de buscas incessantes mais tarde conseguiram uma direção. Um anão fez alguns trabalhos para Vladmir e estava realmente disposto a vê-lo sofrer, visto que o preço acordado não fora pago. O anão perdeu o rastro de Vladmir nas Filipinas, tem certeza de que ele ainda não deixou aquela região, tem informantes por lá e eles tem ouvido seu nome aqui e ali.

Pagaram o anão pela informação e seguiram para Filipina, levaram mais um dia de avião para chegar até lá, em meio aos murmúrios conseguiram uma localização que parecia mais exata, Vladmir foi visto em Gigmoto, ficava em uma das ilhas a nordeste das Filipinas. O local é praticamente inabitado, algumas vilas aqui e ali e um porto que era de longe o local mais movimentado da cidade. Eles chegaram até lá separadamente, cada um em horário diferente pra não chamar a atenção de Vladmir e facilitar sua fuga.

Reuniram-se no quarto que Shamira alugou na cidade, Ynara e Ravn foram para lá de sombra em sombra, evitando contato com os moradores.

- Vou sair esta noite, vi um “Pub” a caminho daqui, cercado de demônios e anjos, com certeza um lugar para se começar a procurar coisas fora do comum.

- Se ele estiver lá, poderá iniciar uma luta, você não tem como vencê-lo sozinho, viu o que ele fez com Melissa e Franco. – Shamira estava preocupada.

- Sei que não devo enfrentá-lo e não o farei, se ele estiver lá, vou convocá-las.

- Pode não ter a chance de vir nos buscar velhote. – Ynara não estava feliz com o plano.

- Não, me desculpe, acho que não me fiz entender, vou conjurar vocês se eu encontrá-lo, só precisam ficar em alerta.

- Perdeu o juízo? – Disse Ynara.

- Não somos objetos nem temos um contrato selado contigo, não pode fazer isso, vai custar toda a sua vida.

- Posso não ter Liber Amon Rá em minhas mãos, mas conheci um homem que o teve. Ele me ensinou alguns truques, disse que não passavam de brisas perto da tempestade que o feitiço poderia realizar se usada a linguagem correta, mas que ainda sim eram poderosos, entre eles está como conjurar seres vivos. – Fez uma pausa enquanto lembranças de seus amigos enchiam sua mente. – Bom, se fizermos o contrato agora e eu pagar o tributo, poderei invocar vocês sempre que precisar, é um contrato arriscado, afinal vocês não terão como evitar isso, se eu fizer o invocamento vocês serão instantaneamente levadas onde eu estiver.

Shamira levantou-se sorrindo.

- Por mim tudo bem, isso parece muito bacana.

Ynara olhava para a irmã com um sorriso no rosto, tinham mais de mil anos e Shamira ainda conseguia se comportar como uma menininha.

- Não temos muitas opções e de toda forma, se você me chamar num momento que eu não queira ir, você saberá de imediato, provavelmente vou arrancar sua cabeça.

Levantou-se também.

- O que devemos fazer?

Ravn colocou-se de pé também sorrindo.

- Sim, se eu começar a encher o saco, pode fazer isso.

Todos riram. Ravn conjurou uma adaga dourada, ela pairou no ar por alguns instantes e foi ela mesma até a mão do mago.

- Farei uma marca em vocês usando essa adaga e uma marca em mim mesmo, o preço do invocamento é meio caro, mas é a opção mais rápida para vocês chegarem para salvar o dia.

- Como assim, que preço deve ser pago?

- Sangue – Disse o mago – preciso do sangue de vocês na adaga, com o sangue de vocês desenharei um símbolo em mim e com meu sangue desenharei um símbolo em vocês, depois farei o encantamento entregando minha energia, se der tudo certo vocês serão marcadas em mim e eu em vocês, assim eu posso invocá-las sem precisar proferir nada, só precisarei tocar a carne onde vocês foram marcadas e desejar a presença de vocês, assim vocês chegarão ao meu lado.

- Vai marcar você em mim? Que conversa estranha é essa Ravn?

Ynara falava num tom autoritário, Shamira deu um sorriso e Ravn quase morreu, seu sangue gelou, o coração acelerou e as pernas bambearam.

- Não, eu digo, não é nada, eu só. – Ele não conseguia falar nada com nada.

Ynara desatou a rir acompanhada por Shamira enquanto o velho ia se acalmando e recuperando a cor natural de sua pele.

- Faça o que tem que ser feito e vamos logo resolver esse problema.

Ravn se recompôs, foi até Shamira, ela estendeu o braço direito para ele, ele fez um pequeno corte em seu antebraço, a adaga “bebeu” o sangue de Shamira e tornou-se vermelha, Ravn usou a adaga para riscar em sua pele, em seu antebraço esquerdo, por dentro um símbolo que representava o nome de Shamira. A lamina voltou a seu estado inicial, foi até Ynara e fez o mesmo, rabiscando o símbolo que representava Ynara ao lado do símbolo de Shamira e a lamina voltou ao normal novamente. Fez um corte em si mesmo, esperou a lamina beber o sangue e desenhou, no ombro direito de Shamira e no esquerdo de Ynara o mesmo símbolo, que representava o próprio Ravn.

- Estão prontas?

Ambas assentiram.

- Vai doer um pouco.

 

O mestre e seu servo, tornam-se um, onde um está o outro estará.

Pelo sangue e pela dor, a distancia será vencida.

 

Quando terminou de recitar o encantamento todos os símbolos arderam numa chama avermelhada, e os símbolos foram tatuados na pele de todos.

- Quando um de nós morrer, o símbolo irá desaparecer, logo, isso é temporário. – Deu um sorriso rouco. – Se eu tiver de invoca-las, vocês terão de me proteger por alguns segundos, ficarei num estado de torpor.

- Por que não nos disse isso antes?

- Porque sei que não aceitariam o risco. Bom, está feito, vou comer algo pra restabelecer a força e vou ao bar buscar informações, fiquem atentas.

Shamira voltou-se para a TV e Ravn e Ynara saíram do local.

Ravn forçou-se a comer algo e esperou até que o corpo transformasse aquilo em energia.

Saiu do quarto de hotel por volta das seis da tarde, o sol já havia sumido e a noite ganhava força. Seguiu a pé por ruas estreitas e barulhentas, a cidade era um tanto mal cheirosa, viviam de pesca e os containers mantinham toneladas de peixes prontas para seguir viagem cruzando o oceano.

Levou cerca de dez minutos para chegar ao “pub”, deu uma olhada em volta e por fim entrou.

O Local lembrava muito os famosos pubs ingleses, iluminação meia boca, um bar comprido apinhado de gente, algumas mesinhas espalhadas e três mesas de bilhar do lado esquerdo, o lugar estava cheio de pescadores e marinheiros, mas as pessoas que moravam na cidade também compunham a clientela.

Ravn procurou um lugar mais afastado para se sentar e encontrou uma mesinha ainda desocupada a direita do bar, bem próximo a parede, sentou-se lá e aguardou. Uma garçonete de mais ou menos dezoito anos veio lhe atender, loira e linda, tomou seu pedido e saiu gingando entre os rugidos e assovios de vários clientes, pelo visto ela era a alegria do lugar, pois distribuía sorrisos para quem com ela falasse.

Voltou e entregou a Ravn uma dose de whisky e uma cerveja local, que ela garantiu ser uma das melhores que já provou.

Ravn ficou ali, parado, seus olhos treinados tentando identificar o sobrenatural, expandiu sua mente a fim de captar algumas conversas entre pessoas que lhe chamavam a atenção, infelizmente até agora não tivera sucesso. Passou praticamente a noite toda neste bar sem nada conseguir, voltou ao hotel e dormiu.

Repetiu isso por uma semana inteira, e não encontrou nada, Shamira e Ynara, da segunda noite e diante, iam a outros bares, conversavam animadas com marinheiros e pescadores a fim de conseguir informações, nada de promiscuidade, eram apenas receptivas, o que já bastava pra conseguir que os marmanjos falassem com elas sobre o que elas quisessem.

Já estavam a oito dias em Gigmoto quando tiveram o primeiro sinal de que havia alguém poderoso por ali, perceberam que alguns humanos iam e vinham em tarefas constantes, em horários incomuns, decidiram seguir alguns deles e perceberam que a mente destes ficava praticamente vazia enquanto desempenhavam essas tarefas, sinal básico de quem está sendo controlado.

Seguiram um dos rapazes de perto durante todo o dia, na parte da noite ele foi em direção a um dos piers, pegou uma lancha e seguiu para alto mar.

- Vocês duas voltem e fiquem a postos, eu vou segui-lo.

Ravn alçou voo e seguiu a lancha dos céus, como uma águia, pronto para descer e agarrar sua presa.

O rapaz levou cerca de meia hora pra chegar até seu destino, uma ilha particular na costa Filipina. Assim que ancorou foi recebido por dois homens, estes o ajudaram a retirar alguns itens de dentro da lancha e depositar em uma caminhonete, entraram e seguiram em direção a casa. Ravn, ainda no ar, deu uma volta completa na ilha, identificou a casa para onde estavam indo e desceu aterrissando na ilha, próximo a costa, onde dificilmente haveria algum feitiço de proteção ou vigilância. Sentia algo estranho no ar, mas não conseguiu identificar se Vladmir estava por ali ou não.

Seguiu a pé em direção a casa, se houvesse alguma defesa mais próximo da casa, o uso de magia iria lhe entregar. Levou pouco mais de dez minutos em caminhada acelerada para chegar próximo a casa, o carro usado para transporte já estava vazio. Deparou-se com uma verdadeira mansão, varanda luxuosa, uma piscina que dava para dentro da casa sendo metade coberta e metade descoberta, a sala da casa dava para a piscina e num deck no piso superior havia uma sala de estar.

Todo o piso térreo da casa tinha paredes de vidro, na parte de baixo ficava essa piscina ocupando metade do ambiente, uma sala em volta da piscina, uma biblioteca e a cozinha, no andar superior ficavam quatro suítes grandes e bem arrumadas, todas com sacada e a sala de estar que permitia saltos para a piscina.

Ravn, sorrateiro e silencioso, deu a volta na casa e percebeu movimentação na sala de estar, de onde estava não podia ver muito, então procurou um ponto melhor. Subiu em uma das árvores e ficou no mesmo nível do piso superior, conseguiu ver a sala de estar, lá estava o rapaz que Ravn seguiu e os dois homens que o ajudaram a retirar os itens, estes estavam de frente para um homem que estava sentado num grande sofá de costas a parede de vidro que dava visão ao mago.

Mantiveram a conversa por alguns minutos, por fim os três homens saíram da casa. Ravn manteve-se imóvel como uma estátua, passaram-se alguns minutos até que finalmente o homem levantou-se, caminhou até o centro da sala e espreguiçou-se, então repentinamente ele estava ao lado de Ravn.

- O que faz aqui, Velho fraco?

Ravn não teve tempo de bloquear o ataque, foi atingido no rosto por um potente soco que o jogou para trás, estava em queda livre, tentou tele transportar-se para seu apartamento, mas algo o estava bloqueando, tele transportou-se para os céus e conseguiu, pelo jeito só não era possível fazer uma fuga direta dali. Vladimir voou até estar no mesmo nível de Ravn.

- Está cansado da vida monótona e resolver vir aqui para morrer?

Ravn não disse nada, apenas olhando furiosamente para seu antigo aluno.

- O que é isso? Greve de fala? Virou monge e fez um voto?

Explodiu em gargalhadas, Ravn ainda nada falava, mas a raiva o fizera ganhar tons avermelhados.

- Sabe, achei que viria mais cedo, logo depois que matei aquela vagabunda e o mendigo que andava com ela, como se chamava mesmo, Franco, acho que era esse o nome, não costumo me dar ao trabalho de decorar o nome de lixos assim.

Ravn não conseguiu se conter, seu ódio consumindo a razão, iniciou um ataque furioso em pleno ar, atirou diversas bolas de fogo contra Vladmir que desviava com facilidade, tele transportou-se as costas do bruxo e estava perto de cravar-lhe uma faca nas costas, quando o perdeu de vista e foi atingido por uma clava nas costas que o jogou ao solo, antes de colidir conseguiu diminuir a velocidade e tocar o solo devagar, estava com um buraco enorme nas costas, sangrando muito, mas ainda vivo.

Vladmir tocou o solo com leveza e graça, sorria doentiamente, como um verdadeiro infernal.

- Depois de matar você, velho, irei atrás do restante do seu grupinho, vou matar todos e então minha vingança estará completa e nenhum outro humano será mais poderoso que eu.

- Sempre tem alguém mais poderoso, tenha isso em mente criança.

Vladmir cintilou de ódio ante a provocação e passou a enviar esferas de fogo de todos os lados, não esperava um ataque em sua ilha, então não tivera tempo de preparar muitos truques contra possíveis inimigos, mas um deles seria possível realizar, conjurou uma adaga de pedra negra e cravou na perna esquerda recitando um encantamento numa língua estranha, a sua frente uma fenda se abriu e de dentro dela vieram um Serpentis e um Salamander, um Salamander tem o mesmo aspecto físico de um Serpentis, mas seu corpo fica em fogo constante.

Vladmir ficou um pouco tonto devido o uso desde poder, conjurar feras infernais era caro demais, quase um litro de sangue abandonou seu corpo de uma só vez. Ele fincou o joelho direito no chão e ficou ali esperando que seus lacaios concluíssem o trabalho.

O Serpentis era muito rápido, fazia ataques e mais ataques cuspindo uma gosma negra e fétida que desmanchava tudo que tocava, o Salamander lutava no mano a mano contra o velho, que caso fosse atingido seria consumido por completo pelo fogo infernal.

Ravn conjurou uma espada mística antiga, conhecida entre os magos e cavaleiros antigos como Caçadora de Dragões, pois tem o poder de “beber” o fogo e cuspi-lo de volta. O salamander sabia do que se tratava e procurou uma distancia segura para atirar bolas de fogo. Ravn esquivava e se defendia como podia, mas conseguir isso contra os dois infernais juntos estava se provando uma tarefa muito complicada. Foi atingido por uma bola de fogo que o jogou para trás, Salamander partiu para cima dele num salto cinematográfico, enquanto o Serpentis conseguira finalmente acertar um de seus ataques na perna de Ravn. Sua perna começou a se desfazer, a pele sendo derretida, depois os músculos, Ravn conseguiu recitar um encantamento de cura antes que sua perna fosse destruída, no entanto metade da perna direita não tinha mais carne.

Assim que o velho tombou no chão, Salamander estava sobre ele, mas em salto era alvo fácil. Ravn atirou a espada contra o infernal que foi atingido no peito, Salamander parou de emitir fogo, seus olhos se apagaram também, não tinha mais vida, por fim, ainda em queda na direção de Ravn seu corpo se desfez em cincas e uma nuvem de enxofre.

Ravn se tele transportou para cima de Serpentis, já com Caçadora de Dragões em sua mão, girou a espada no alto e liberou todo o poder selado de salamander de uma só vez, o ataque tinha um raio de seis metros, Serpentis não conseguiu esquivar a tempo e foi consumido pelo fogo. Ravn tocou o solo e virou-se para Vladmir que já havia desaparecido, o mago tentou girar o corpo quando sentiu o ataque chegando pela direita, mas a perna ficara seriamente destruída e seu movimento foi muito mais lento do que esperava, uma lança foi cravada em seu abdômen, Vladmir a empunhando, ele empurrou o mago até uma árvore próxima e cravou o velho ali, Ravn quase desfaleceu.

- Você não é dos piores velho, mas não tem mais pique pra brincar dessas coisas.

- O que você fez com Liber Amon Rá?

- É por isso que está aqui? Pensei que quisesse vingança.

- Terei minha vingança, mas quero primeiro o livro. – Terminou de dizer isso cuspindo sangue, não duraria muito tempo.

- Bem, você vai morrer aqui, então não vejo porque não deveria lhe contar, está onde deveria estar, em sua casa original.

- Você não sabe como entrar naquele lugar, ninguém sabe.

- Você ainda não compreende não é, meu velho? Não estou mais preso as suas regras, não estou mais preso a regra alguma. Consegui mais conhecimento do que jamais poderia imaginar, não posso mais usar os feitiços de um humano comum, pois minha alma está marcada pelo diabo, mas foi um preço baixo a pagar pelos conhecimentos e poderes que recebi. – Fez uma pausa enquanto girava a lança causando dor em Ravn. – Eu sei muito mais hoje do que quando era seu aluno.

Desferiu um soco violento no rosto de Ravn.

- Sabe, devia ter me parado quando teve a chance, chance essa que nunca mais terá.

- Então você sabe mesmo onde está e como entrar?

- Já lhe disse não tenho porque mentir, você não sairá daqui.

- Você é uma criança muito segura de si, nem parece mais o moleque catarrento que eu decidi transformar em algo de valor, veja só como me enganei, não passa de um moleque covarde agora, ao menos não é mais um catarrento fedido, pedindo dinheiro por ai.

Vladmir deu um grito de ódio e partiu contra Ravn, adaga na mão, ia dilacerar o velho.

Ravn agiu rápido e de forma precisa, tocou o antebraço na hora exata, Shamira e Ynara uma de cada lado surgiram, Vladmir não teve tempo de fazer nada, a Ursa Guerreira enterrou as garras em sua barriga enquanto Shamira deu-lhe um gancho tão potente que arrancou sua cabeça fora.

Ynara rugiu regozijando-se na vingança, no sangue em suas mãos, Shamira salto no ar, sacando a espada e partindo a cabeça de Vladmir em duas partes.

Os olhos do ancião encheram-se de lágrimas, lembranças de quando conheceu uma linda mulher, do tempo que passaram juntos, do perigo que ela correu por estar com ele, e a dor da partida para que ela não estivesse mais em risco. Lembrou-se de quando resolveu voltar para vê-la, uma década mais tarde, de longe, apenas para saber se estava bem e descobrir que havia morrido, morrido durante um parto proibido de um filho sem pai, lembrou-se do desespero de saber que a criança vivia nas ruas, lembrou-se de olhar nos olhos do garoto e ver a si mesmo, sem sombra de duvidas era seu filho, lembrou-se do pranto, e também da alegria de ter um pedaço de sua amada ao seu lado. Mas o rapaz estava corrompido, já tinha muita maldade dentro de si, crescendo sem mãe ou pai em meio a uma sociedade hipócrita e violenta. Lágrimas ainda escorriam por seu rosto enquanto via a cabeça de seu filho voando no ar e sendo partida ao meio por Shamira, o corpo com um buraco enorme que lhe atravessava, estava consumado, seu maior pecado, agora estava destruído.

Forçou-se a se mexer e usou a força que tinha para quebrar a lança e retirar o corpo de lá.

- Tragam o corpo dele aqui. – Disse isso e caiu de joelhos, Shamira veio em seu auxilio e o ajudou a ficar de pé. Ela fechou os olhos e começou uma oração contida, clamando pela vida de seu amigo, colocou sua mão sobre o ferimento no abdômen de Ravn e viu o ferimento retrocedendo no tempo, fechando-se aos poucos, ele tinha que sobreviver.

Ravn pegou seu sangue e o sangue de Vladmir, usou o dedo coberto de sangue para desenhar um símbolo no chão de terra fofa enquanto recitava, entre lágrimas, o mesmo encantamento que usou para ler as lembranças de Shamira e Ynara.

Entrou num tipo de transe, ficou nesse estado de não vida por alguns minutos, seu corpo parou de se regenerar quando ele começou a ler as lembranças de Vladmir, lembranças de sua infância, molestado por homens da vila onde morava, jogado na rua para comer lixo e viver com os porcos, sentia a dor que ele carregava, sentia a culpa que lhe fora dada.

Por fim conseguiu o que queria, viu Vladmir entrando numa grande biblioteca, a Biblioteca de Alexandria, viu as provações pelas quais ele passou e o viu depositar o livro em seu devido lugar, conjurou bestas do inferno e as deixou de guarda, volteou-se para a saída, então foi possível perceber sua localização. Voltou ao normal, olhou em volta, viu Ynara e Shamira fitando-o preocupadas.

- Conseguimos....- Mal terminou de dizer isso e desmaiou, perdeu muito sangue, mesmo com o ferimento se recuperando ainda corria risco de vida.

- Temos que tirá-lo daqui e prestar socorro.

Ynara ajudou a levantar Ravn e partiram em corrida acelerada, tinham pouco tempo pra salvar a vida de Ravn.