13 – A Cruzada
Julius passou a noite na casa do Lupino, remoendo dentro de si a culpa pelo que ocorreu com seu amigo. Havia pedido ao amigo mais do que se deve e isso quase lhe custou à vida. Esperava agora, colher alguma informação que lhe permitisse vislumbrar o caminho ao qual essa luta estivesse seguindo. Sentia-se muito mel por seus amigos, Gustavo sofreu um ataque direto antes mesmo dele saber de seu envolvimento e Kid quase tivera a alma levada diretamente ao inferno por conta de um capricho de Julius e ele, Julius, que parecia ser de alguma forma “importante” no desenvolvimento do mesmo, não fora se quer afrontado.
Com esses pensamentos revirando sua mente e seu estomago, a noite foi passando, calma, fria e solitária, até que por volta das seis da manha os raios de sol ganharam as janelas e pouco antes das sete desistiu de dormir e decidiu levantar-se já sob sol forte e imponente nos céus.
O sofá onde passou a noite era pequeno para seu corpo e ele ficou mau acomodado por toda a noite, o que ele percebia agora, tinha lhe empregado dores pelo corpo.
Tentou mover-se, mas a o corpo dolorido e cansado se recusou, um gemido escapou por entre os dentes, forçou-se mais um pouco e conseguiu sentar-se, esfregou os olhos e deixou o sofá indo em direção ao banheiro, então teve a atenção chamada pelo som do celular vibrando sobre a mesa de centro, voltou-se para lá e atendeu:
- Alo.
- Julius?
- Eu mesmo. É você Eidi?
- Sim, sou eu. John, estou tentando te ligar desde ontem, está tudo bem?
- Sim, sim, só não vi o celular tocando mesmo, o que houve?
- Cara, um dos anciões que residem atualmente no Brasil veio me procurar, eu já sabia que estava por aqui e creio que deveria ter te contado antes, mas em fim, agora é a hora.
Fez uma pausa esperando alguma indagação de Julius, mas esta não veio.
- Faustu, creio que este nome lhe seja familiar. Era o braço direito de Ivankovic, o vampiro que matou Joel segundo os relatos das famílias originais. O braço direito do vampiro que você destruiu, creio que quem o contratou deixou de lhe informar isto para que quando ele encontre você o ódio o consuma e ele esteja mais violento.
- Faustu?!?! Faz tempo que quero vê-lo, quando consegui cercar e destruir Ivankovic, achei que ele já estivesse morto – Julius foi tomado por fúria, Faustu era um dos algozes de seu tutor, um dos vampiros que cercaram e destruíram seu professor e pai substituto – Isso ficou mais interessante pra mim agora. Você está bem mesmo?
- Sim estou, mas devo dizer que foi humilhante, ele brincou comigo o tempo todo, ameaçou matar Sukah caso eu não falasse e acabei revelando seu nome.
- Está tudo bem cara, sei o quanto se importa com essa garota, você está bem e é isso que importa, vamos nos manter em contato, se ele aparecer me avisa, tento chegar ai antes dele partir.
- Tudo bem então se cuida.
- Você também, até mais.
Julius desligou o celular, recolocou-o sobre a mesa de centro e ficou quieto e com os olhos perdidos no tempo e espaço, sendo preenchido por lembranças tristes enquanto a cólera tomava conta de sua mente. Permaneceu assim por alguns minutos e então resolveu que era melhor ocupar-se. Procurou Rafael pela casa, mas ele não estava lá. Foi até o quarto de Kid e ele ainda dormia, então foi para a cozinha preparar um café da manhã.
Três dias se passaram desde a visita de Kid a penumbra e não houve alteração alguma, fosse relacionada a batalha ou fosse sinal de que Kid despertaria. Eidi não ligou mais o que devia querer dizer que ninguém o incomodou mais. Gustavo manteve contato, informando que as poções e os encantamentos estavam prontos ou em andamento.
Diz-se entre os guerreiros que quanto maior o silêncio que precede uma grande batalha, mais dura ela será e o silêncio e vazio que O Iluminado sentia agora eram terríveis.
Julius estava começando a ficar agitado e ansioso e isso no geral leva as pessoas a tomar decisões precipitadas. Passou quase que todo o tempo orando, clamando a Deus para que a batalha tivesse logo início e por vezes se questionando se o silêncio era parte do plano de Deus. Ao final do terceiro dia, sem que houvesse alteração no quadro clínico de Kid, Julius começava a considerar a possibilidade de encontrar um “Patrono Vitae” como eram conhecidos os médicos que sabiam da existência de humanos “especiais” por assim dizer. Mas a cor de Kid estava voltando a seu corpo e assim sendo decidiu esperar mais um pouco.
Na manha do quinto dia despertou por volta das seis da manha, com o sol raiando e os galos no fundo da casa fazendo escândalo. Abriu os olhos e deu de cara com seu amigo, sentado no sofá a sua frente.
- Que horas são? – Perguntou Julius esfregando os olhos.
- Passa um pouco das seis da manhã – Disse Kid em tom descontraído.
Julius o olhou preocupado.
- Cara relaxa, não pegou nada ontem, Rafael deu um jeito, to devendo uma pra ele – e deu uma piscadela para Rafael.
- Não pegou nada ontem? Você está dormindo faz quatro dias – Disse Julius sentando-se no sofá.
O Lupino o olhou espantando.
- Opa, sono de beleza, sabe como é, não é fácil manter o brinquedo das garotas em forma – Kid ria enquanto falava – Além do mais saí de lá com uma informação interessante, eles encontraram um portal.
Rafael olhou assustado, Julius despertou de vez.
- Um portal? Tem certeza disso? Não há um arcanjo com ele?
- Sim, mas pelo que entendi o arcanjo está adormecido, sei lá, parece que cruzou o portal, está no plano físico, sujeito as forças da matéria.
- Isso é impossível – disse Rafael – o que levaria um Arcanjo a cruzar um portal? Eles possuem o corpo de um portal a fim de se passar por homens e cumprir ordens divinas, mas nunca, em hipótese alguma cruzariam um portal a fim de conseguir materializar um corpo próprio. Não é natural a um anjo correr os riscos que os humanos correm, não temos alma para ser salva, se decidimos viver entre os homens, não temos o direito de errar. Mesmo que ainda possa existir como um arcanjo, só retornará ao Palácio Celeste se Deus o aprovar e para isso teria que morrer como homem, sem cometer pecado algum, caso contrário seria destruído de uma vez por todas assim que morresse.
- Foi o que pensei, mas tenho certeza do que ouvi, o arcanjo passou pelo portal e isso é um fato. Parece que seus poderes estão selados, por hora, em breve deve recobrá-los, mas creio que seja esse o ponto, eles pretendem atacar e tomar o portal antes que isso ocorra.
- E você conseguiu definir o local?
- Negativo. Senti que seguia ao norte do país, tenho certeza de que não saímos do Brasil visto que o clima não mudou muito, mas não senti a presença de um ser poderoso como um arcanjo. Não creio que estivesse muito próximo de onde chegamos.
- Entendo. Vamos nos preparar para partir então, Rafael pode cobrir um espaço grande, e sentem a presença um do outro com facilidade, não tem o mesmo dom de comunicação mental de que dispomos, mas nada se compara a capacidade de “sentir” a aura que eles têm, se o portal ainda estiver vivo nós o encontraremos. – Julius estava um tanto abalado com a notícia, a pressa tomando conta de seus instintos, era melhor encontrar o portal o quanto antes, e ainda ter uma chance de despertar o Arcanjo.
- Tem certeza de que devemos nos mover neste momento Julius? – Rafael interrompeu – Não temos certeza de onde estão e podemos encontrar muitos inimigos, isso pode nos causar baixas desnecessárias, um Arcanjo jamais será derrotado por um demônio, tenha ele o poder que for.
- Sei disso Rafael, sei que as chances de encontrarmos alguém são mínimas, mas preciso me mover, preciso fazer algo, ficar aqui ajudará em quê? –Rafael balbuciou algo, mas deteve-se - Kid, lembra-se qual foi a ultima réstia de civilização que encontrou na penumbra?
- Na verdade não vi muita coisa além de floresta e mais floresta, baseando-se em meu senso direção posso supor a partir do ponto de partida até onde eu fui, espere um instante. – O lupino deixou a sala indo até o quarto e retornando instantes depois com um notebook nas mãos, já ligando, sentou-se e aguardou que fosse iniciado, abriu uma pagina da Internet, procurando por um mapa do Brasil. – Eu voei muito rápido, muito mais rápido do que posso compreender, mas nada se compara ao voo que fiz de retorno segurando Rafael. Anjo, se você fosse considerar uma velocidade nos cálculos humanos, saberia dizer qual era sua velocidade naquele momento?
Rafael levantou uma de suas sobrancelhas e sorriu para Julius.
- Não faço ideia, somos rápidos, mais rápidos do que qualquer coisa que vocês tenham para locomoção. Quando lutamos nos movemos mais rápido do que quando nos locomovemos, muito mais rápido. Na verdade Uriel, o Mestre da Matéria, vive fazendo testes no plano físico e levamos cerca de meia hora terrestre para percorrer a circunferência da terra. Isso foi feito por um anjo com poder para “tocar” o plano físico, então ele estava sob julgo das leis da natureza e isso o torna um tanto mais lento, se não me engano por ação do vento.
- Isso parece ser rápido, qual a circunferência da terra Kid?
- E como eu vou saber isso? Ta maluco?
- O computador criança, procura logo isso ae.
- A sim, claro - disse Kid sorrindo enquanto digitava no site de busca o que desejava saber, deu “enter” e uma quantidade de links apareceu na tela – Aqui está, aproximadamente quarenta mil quilômetros se for pelo meridiano equatorial e trinta mil quilômetros se forem pelo polar. Sabe pelo menos por onde foram, Rafael?
- Não passamos pelas geleiras – Disse o angelical.
- Perfeito, vocês levam meia para cruzar a terra isso da uma velocidade média de – Fez umas contas de cabeça – oitenta mil quilômetros por hora ou ainda - pegou o notebook de Kid e abriu à calculadora – praticamente vinte e dois quilômetros por segundo. Por quanto tempo vocês voaram? – Perguntou Julius a Kid.
- Não sei ao certo – forçou um pouco as mente – acho que por uns noventa segundos, não passou disso.
- Certo, isso em linha reta e na direção em que você seguiu a partir daqui da mais ou menos aqui, fronteira entre Mato Grosso e Amazônia, podemos iniciar nossas buscas em Manaus, creio que eles estavam guardando o véu nas fronteiras do estado, no caso, cercando a Amazônia. Vamos de avião já que não temos como voar com Rafael, deve haver voos diários para esses lugares, dê uma olhada ai Kid, vou ligar para Gustavo e ver se ele segue conosco ou não.
Kid concordou e continuou no computador, procurando por passagens aéreas e horários de voo, Julius pegou o celular e discou o numero da casa de Gustavo, o telefone chamou algumas vezes e uma voz sonolenta foi ouvida no outro lado da linha.
- Yo...digo alo, quem fala?
- Acorda pra cuspir vagabundo, temos que nos mexer.
- Julius? Cara, são sete e meia da manhã, quer me ver morto?
- Mas é uma menininha mesmo – disse Julius enquanto ria – Kid despertou, conseguimos descobrir algumas coisas e teremos de viajar ao norte do Brasil, existe uma grande chance de termos que lutar agora, mas podemos estar apenas andando sem necessidade, acho que vale o risco, você vai conosco?
- Ainda não conclui as poções, elas estão em fogo constante, mas acho que da pra ir mesmo assim, quando vamos partir e pra onde vamos?
- Esse é o espírito filhote. Vamos para Manaus, tenho certeza de que será bom pra você, se tem um lugar onde o contato com a matéria é garantida é na Amazônia.
Gustavo riu.
- Tudo bem, vou arrumar as coisas por aqui e por volta do meio dia chego à casa do Lupino, até mais filhote.
- Te espero, vamos pegar um voo no fim do dia, devemos chegar lá pela madrugada.
- Fechado.
- Até mais ver.
- Até.
Desligou o telefone voltou-se para Kid.
- Ele vai conosco, procure passagens para a parte da noite, deve haver voos mais tranquilos, com numero reduzido de passageiros, hoje é sábado, quem tinha que viajar a passeio já se foi.
- Sim senhor! – Disse Kid fazendo graça – Fica calmo cara, ninguém morreu e você já está parecendo que tem que ir a um enterro em massa.
- Tem razão, vou relaxar um pouco.
Foi até a porta e saiu da casa, estava muito angustiado, parecia estar apressando as coisas, mas sentia como se estivesse ficando sem tempo, como se os eventos de centenas de anos estivessem convergindo para este momento.
Vinha sendo atormentado por demônios cada vez mais poderosos, tinha um ancião em seu encalço e ele era um dos que mataram seu mentor, a vingança lhe parecia justa, atacaram seu amigo mago e a gravidade da situação foi acentuada com a presença de um arcanjo protegendo ele, se não bastasse isso os malditos haviam encontrado um portal.
Olhou para o telhado da casa e saltou até lá, Rafael cruzou o telhado alguns instantes depois.
- Rafael, houve outra ocasião em que Lúcifer tentou matar um portal?
- Matar? Ele sempre tenta pegar o portal vivo, não sabemos o porquê, mas ele tenta levar o portal em corpo e alma para o inferno, na verdade até hoje quase duzentos humanos nasceram com os dons de um portal, uma concentração divina sem tamanho e uma conexão direta entre físico e espiritual. Dizem que o anticristo, aquele que virá assolar a terra com mentiras como se fosse o novo messias, será fruto de um portal. Dizem que será filho da Estrela da Manhã e que seu poder será grande e devastador, será uma época em que aqueles que sucumbirem não terão ajuda divina. Neste tempo os anjos não poderão vir em auxílio dos homens e todo o homem que se curvar diante deste falso messias será queimado no fogo do inferno, no poço das lamentações.
- Entendo, conheço essas profecias. Seria esse o caso?
- Não, só existe um lugar onde um ser humano pode ser concebido, no plano físico, não se esqueça que Lúcifer é um arcanjo e assim sendo deveria usar um portal para ficar no plano físico. Mas como dizem “ele vem em muitas formas”, isso quer dizer uma coisa, ele consegue possuir outro corpo qualquer, deve destruí-lo em no máximo um dia, mas ele consegue, assim como seus demônios o fazem. Quando ele achar que é forte o bastante para enfrentar a Deus nos últimos dias ele seguirá o que está escrito, tenho certeza disso. Como lhe disse, não faço a menor ideia de quais são seus planos.
- Isso é muito estranho, ele já conseguiu tomar um portal de corpo e alma?
- Sim, se ele conseguir este será o quinto, mas isso em milênios de existência, não sei como poderia lhe servir durante este tempo, mas creio que tenha feito maldades além da compreensão humana.
Julius se perdeu tentando organizar as ideias enquanto imagens de torturas inimagináveis vinham a sua mente, balançou a cabeça e retomou a conversa.
- De fato, sei bem que ele pode corromper uma alma a níveis fora do comum, de qualquer forma precisamos chegar até o portal, se Deus quer tanto protegê-lo é porque desta vez tem algo diferente.
Ficaram em silêncio por alguns instantes até que Kid veio ter com eles.
- Mano, tem um voo partindo do aeroporto de Guarulhos hoje às vinte horas, é o único, o tempo estimado de duração da viagem é de cinco horas, vamos chegar lá pela madrugada, já comprei passagens pra nós três.
- Perfeito, vamos nos aprontar, temos que montar as malas de maneira que seja possível levar algum armamento, ainda tem a licença pra transportar armas brancas e caça?
- Com certeza - disse Kid - e você?
- Agora estou usando um distintivo da polícia federal, consegui um cara que trabalha dentro da administração, tenho autorização pra transportar quase tudo, só preciso avisá-lo em que voo estarei que ele dispara a notificação para o aeroporto, assim nem tenho que passar por detectores nem nada do tipo. Já tem o numero do voo?
Kid voltou até o sofá, pegou o notebook e consultou o comprovante
- Voo 019 da Gol, classe executiva.
- Beleza – disse Julius e pegou o celular, discou o numero e aproximou o aparelho do rosto – Bruno? E ai cara tudo bem contigo? Ta certo, tem que ser assim. Vou voar hoje, preciso levar alguns itens comigo, voo 019 da gol, partida de São Paulo às vinte horas com destino a Manaus, pode me colocar na lista? Perfeito cara, muito obrigado, te devo mais uma – desligou o voltou-se para Kid – To dentro.
- Assim fica fácil, vê se me inclui no processo com esse cara, ia facilitar muito a minha vida, detesto me vestir a caráter, e toda vez que uso essa carteirinha de autorização de caça tenho que ir vestindo aquelas roupas ridículas de caçador.
Todos na sala riram.
O dia passou acelerado, Gustavo chegou pouco depois das treze horas e ficaram jogando cartas e bilhar até umas dezesseis horas. Terminaram de arrumar as malas e partiram para Guarulhos por volta das dezessete horas, Julius e Gustavo em uma moto, com o iluminado pilotando e Kid sozinho em outra.
Chegaram ao aeroporto por volta das dezoito horas, Rafael já estava lá, no topo de uma das torres aguardando os aliados chegarem. Israel havia seguido com o grupo de humanos, mas assim que atingiram o objetivo foi se posicionar com Rafael, olhando da torre viam vários demônios caminhando ao lado de humanos, alguns anjos também estavam por ali e partiam junto com os aviões, no intuito de protegê-los de ataques demoníacos. Muitos anjos foram cumprimentar os guerreiros que ali estavam, um anjo pequeno chamado Guilherme seria o protetor do voo 019 da gol, tinha aproximadamente dois metros de altura, realmente pequeno para um guerreiro angelical, cabelos vermelhos, como brasas incandescentes, espetados para cima, o que lhe dava a impressão de estar em chamas constantes, olhos vermelhos. Seu rosto era bolachudo e cheio de manchas, sempre mantinha a expressão séria. Usava uma capa também vermelha, um cinturão de ouro com uma trombeta de marfim. Sua arma era uma lança que ficava presa entre suas asas as suas costas, um escudo também ficava preso ali, isso era incomum, poucos anjos manuseavam escudos. Posicionou-se ao lado de Israel e ali permaneceu, calado e apreensivo até a hora do voo.
Kid passou fácil pelos detectores de metal, sua carteirinha lhe garantia o transporte de tudo o que estava em sua mala. Usava uma roupa típica de quem vai a um safári, incluindo a isto um ridículo chapéu de caça.
Gustavo ativou uma runa que lhe permite manipular a eletricidade a sua volta e ocasionou uma falha no equipamento de detectar metais, sua bolsa foi aberta, mas o fundo falso lhe permitiu seguir tranqüilamente. Julius apenas mostrou seu distintivo, os funcionários verificaram a lista e permitiram que embarcasse. Às dezenove horas e cinqüenta minutos os três já estavam dentro do avião.
A aeronave conta com capacidade para cento e quarenta e quatro passageiros, mas operava neste voo com pouco mais de setenta passageiros e com esses setenta passageiros haviam alguns demônios, com garras cravadas em suas almas, tinham o controle sobre a vida dessas pessoas e sentiam-se a vontade, mesmo ante uma guarda angelical.
A classe executiva era confortável e nesta ala apenas dez pessoas estavam voando, incluindo a esse numero, Julius, Kid e Gustavo, os outros eram três homens e quatro mulheres, sendo que haviam dois casais. Israel e Rafael ficaram à frente com Guilherme e poucos minutos depois o voo teve início. Após os procedimentos de decolagem todos relaxaram soltando os cintos e procurando uma atividade para desenvolver, ocupando suas mentes com algo além da possibilidade de ter que lutar em poucas horas contra uma miríade de inimigos.
Completaram três horas de voo e estavam sobrevoando Mato Grosso do Sul, em uma região afastada de tudo, floresta fechada. Julius foi ao banheiro, Gustavo estava lendo um livro e Kid havia cochilando, os casais também dormiram assim como o terceiro homem, já as duas mulheres, que passaram a conversar após a decolagem, ainda conversavam animadamente até que uma delas tombou no chão e apresentava movimentos convulsivos. A outra mulher foi ajudá-la e Gustavo se adiantou, quando estava bem próximo pressentiu o perigo e recuou, uma adaga prateada vinha em direção a seu coração projetada pelas mãos da mulher deitada no chão, passou de raspão no mago e rasgou sua camiseta. Gustavo afastou-se e enquanto brandia a mão direita no ar e recitava um encantamento conjuratório.
“Venit me Gladio”
Uma espada surgiu no ar a centímetros de sua mão direita, ele agarrou o cabo da espada e defendeu o segundo golpe, que foi aplicado pela mulher que fingiu ajudar a amiga, o estrondo do choque entre a espada e uma adaga medieval coberta de maldições, fez com que Kid despertasse. Assim que abriu os olhos, agiu rápido para segurar as mãos da mulher que fingiu o desmaio, quando seu ataque estava a centímetros de seu peito, era uma adaga de prata, caso o acertasse seria seu fim. Torceu o braço da mulher que urrou de dor, seus olhos ficaram negros e ela proferiu uma infinidade de maldições, um dos casais despertou neste momento também proferindo maldições e lançando-se, ambos, contra Kid.
Ele levantou-se girando a mulher em suas mãos no ar e a atirou contra os novos inimigos os três colidiram-se contra a parede oposta e Kid saltou sobre eles atingindo a mulher que o atacou no estômago e levando-a a inconsciência, deu um soco violento na face de cada um dos outros que também desmaiaram. O som da pancada fez com que o outro casal despertasse e quando viram que haviam três pessoas caídas e duas trocando golpes de espada começaram a gritar. Gustavo estava trocando golpes com a inimiga a sua frente, ela tentou uma estocada direta em seu coração, ele esquivou-se com facilidade, a mulher era forte mais não se movia com muita liberdade, havia algo errado, assim que se esquivou acertou uma cotovelada violenta no nariz da mulher que urrou de dor e passou a fazer ataques às cegas. Gustavo preparou-se para matá-la, mas foi impedido por Julius.
- Ela está possuída, não tem culpa.
Julius foi até o casal que estava gritando e fez sinal para que se calassem, ambos obedeceram tremendo, Kid se adiantou.
- Vou ter que ficar de olho aberto o tempo todo né? – disse em tom desinteressado – que saco, isso vai consumindo meus dons.
Gustavo interrompeu.
- Eu não consigo ver essas coisas, assim vai ficar difícil não matar inocentes e mais importante ainda, eles tentaram nos emboscar, provavelmente sabiam que estaríamos nesse voo, é possível que eles estejam monitorando nossas ações em tempo integral?
Julius ficou impressionado com o poder de raciocínio do jovem.
- Na verdade sim, Krinus sabe tudo sobre mim, o tempo todo está comigo em minha casa, me espantei de que não tivessem mandado logo o tal vampiro vir a minha casa, mas suponho que saibam que existem muitas defesas a minha volta.
Caminhou até a mulher que Gustavo quase matara.
- Diga-me seu nome demônio.
A mulher tremeu, mas nada disse, Rafael e Israel entraram no recinto, Rafael foi até o grupo de humanos desacordado.
- O que houve aqui? Esses humanos estão com cheiro dos imundos.
- Foram possuídos – Neste momento Guilherme também apareceu – Acho que foi um ataque meio desesperado, sabem que jamais mataríamos pessoas e como atacaram a nós e não a vocês anjos – apontou para o grupo angelical – vocês não poderiam se envolver.
- Muito esperto de sua parte humano. – O demônio que ainda estava na mulher falava com uma voz rouca e sussurrada. – Soubemos que vocês estariam aqui, não podíamos perder a chance de matar antigos inimigos – Rafael desembainhou a espada e foi na direção do demônio e este lhe estendeu a mão indicando que parasse – Você não me fará mal algum a menos que queira quebrar as regras, a menos que queira ser um de nós. – Terminou de dizer isso e sorriu, uma risada doentia que logo se tornou uma gargalhada. Julius falou.
- Fala como se os anjos fossem os únicos aqui capazes de parar você, se foi incumbido dessa missão creio que tenha sido avisado de quem iria enfrentar? – o demônio não respondeu. – Entendo, então veio pensando que não havia o que perder, típico dos covardes de sua laia. – O iluminado falava com desdém. – Muito bem, deixe-me dizer quem sou, meu nome é Julius, um Iluminado – o demônio recuou um passo – e esta é – Julius concentrou-se por um momento – minha espada. – uma espada em forma de cimitarra surgiu nas mãos de Julius – E por mais que eu ache um saco, eu não sou um anjo. – Descreveu um arco tão rápido que o demônio não teve tempo de fazer nada, o corte o retirou de imediato do corpo da mulher que desabou no chão, ele arfou, sua garganta estava degolada e sua existência começou a se desfazer. Olhou nos olhos de Julius com um sorriso no rosto.
- Espero que aproveite a queda. – Sua existência se desfez e ele desapareceu, o avião deu um solavanco forte e iniciou uma queda. Os passageiros se desesperaram, máscaras baixaram, Julius correu em direção à cabine do piloto, no caminho viu quatro aeromoças e um comissário de bordo mortos. A porta da cabine estava manchada de sangue, ele atravessou a porta e deu de cara com uma cena medonha, os corpos do piloto e copiloto foram explodidos de dentro para fora, Israel voou para fora do avião junto com Guilherme e Rafael, do lado de fora haviam quatro anjos negros, já com suas espadas em mãos.
- Ora, ora, ora, se não é meu ex-companheiro Rafael, que bom vê-lo com saúde meu caro – Rafael, que já estava com a espada nas mãos apertou o punho da espada.
- Baltazar – Disse entre dentes - Espero que saiba que o que fez agora me garante o direito de atacá-lo – disse apenas isso e se atirou como um míssil contra seu oponente, Guilherme pegou o da direita e Israel partiu contra os outros dois, que ao que parece sabiam com o que estavam lidando.
Rafael parecia uma lança atirada por um canhão, a espada a frente pronta para atravessar seu oponente, o mesmo esperou até o ultimo segundo para se esquivar e ao fazê-lo desferiu um golpe mortal com a espada, mas a velocidade em que Rafael estava o permitiu passar sem ser atingido. Rafael parou alguns metros acima de Baltazar e virou-se a tempo de vê-lo vindo em sua direção, ele vinha girando a espada acima da cabeça, a espada entrou em chamas e assim permaneceu, aproximou-se a passou a desferir golpes com a espada em velocidade alucinante enquanto Rafael defendia e contra atacava.
Israel já havia dado cabo de um dos inimigos, o outro era mais habilidoso e como Israel não estava com todo o poder ativo estava tendo dificuldades. Este Anjo Negro era muito rápido, e conseguia pressionar em alguns momentos o arcanjo, Israel era habilidoso e movia sua espada com maestria, defendendo os golpes do inimigo.
Guilherme já havia sido golpeado pela espada de seu inimigo, sua essência vertia por um corte no abdômen, ele poderia se curar depois, agora precisava acabar com a peleja e tentar ajudar as pessoas no avião. Seu inimigo também estava ferido com um corte que praticamente inutilizou o braço esquerdo. Guilherme levantou o escudo e apoiou a lança nele, tentava se aproximar com segurança do inimigo, quando estava bem à meia distância deu uma estocada, o inimigo rebateu o golpe girando o corpo e já realizando o contra ataque. Guilherme abaixou-se o máximo que pode. Girou a lança usando o impulso que a defesa do inimigo causou e completou o girou de baixo para cima fazendo um corte em todo o peitoral do adversário, girou o corpo junto com a lança em uma pirueta no ar e estocou novamente em meio a pirueta, acertando o peito do Anjo Negro em cheio. A vida abandonou os olhos do sombrio e seu corpo se desfez em uma nuvem negra e fétida. Guilherme estava meio tonto, devido à perda de sua essência, olhou em volta e viu que Rafael e Israel estavam indo bem, buscou o avião com os olhos e partiu em sua direção, não sabia como ajudar, mas pensaria em algo.
Dentro do avião Julius tentava controlar a queda, Gustavo estava sentado no banco do copiloto tentando o mesmo e Kid estava escorado na porta olhando os amigos.
- Qual é – disse Julius – como se libera essa merda de controle manual? Que droga. – Um dos relógios de indicadores mostrava que estavam chegando próximos ao solo e um bip ensurdecedor passou a disparar.
- Cara, não da mais, temos que sair daqui, se cairmos com o impacto do avião você e Gustavo morrem e eu fico fora do ar por um bom tempo – Disse Kid – sei que quer salvar essas pessoas, mas muito mais gente vai morrer se não encontrarmos o tal portal.
- Sem chance – foi à vez de Gustavo – não vou ficar com o sangue dessas pessoas na minha mão, se não estivéssemos nesse voo nada disso teria acontecido.
- Mas que droga.
Julius gritou enfurecido enquanto surrava o painel do avião, ao fazer isso uma luz indicando piloto manual acendeu e o manche desceu com tudo, ele o tomou e começou a puxar com força, mas tomando cuidado para não quebrá-lo, Gustavo fez o mesmo com o outro manche só por garantia. O avião começou a ajustar a inclinação ainda descendo muito rápido, suas turbinas não respondiam, foram destruídas pelos anjos negros. Os amigos continuaram fazendo força e a inclinação já estava perto dos 25º quando perceberam que não iam conseguir, o solo estava bem à frente e uma montanha era o destino do avião.
Gustavo olhou para Julius com lágrimas nos olhos, lágrimas que também estavam nos olhos do iluminado, Kid baixou a cabeça e deu as costas indo até a porta mais próxima e arrancando com um chute violento, o avião deu um solavanco e continuou em queda. Guilherme surgiu de dentro do painel de controle do avião.
- Vocês fizeram o que podiam por essas pessoas, não tem mais jeito, apenas deixem, vocês tem uma missão.
Julius chorou ainda mais ao ouvir essas palavras, olhou para Gustavo e percebeu que ele estava orando com lágrimas nos olhos, uma luz muito forte se fez sobre sua cabeça, Julius sabia do que se tratava, o mago abriu os olhos e viu um anjo a sua frente.
- Israel? Perguntou.
- Não, filho do Deus vivo, meu nome é Guilherme, fico feliz em ver que Deus lhe concedeu este dom, mesmo em meio ao caos. Sinto informar que não é possível salvar essas pessoas, vocês devem partir agora.
Gustavo chorou ainda mais, levantou-se e correu até a ala executiva, vasculhou o bagageiro e pegou sua mochila, foi até a porta e saltou, Kid o seguiu de perto e logo depois foi à vez de Julius.
Gustavo olhou em volta e viu o morro onde o avião iria colidir, Kid se aproximou dele o bastante para que se segurasse em seu braço e o mago desenhou a runa do tempo/espaço e sussurrou o encantamento.
Omnia nihil et nihil sunt omnia.
Et tempus et locus conveniat ductu
Ubi sum volo in tempore.
Ianuae Magicae
Desapareceram no ar e reapareceram no solo, como teve tempo de ativar a runa por completo teve um feitiço perfeito e chegou ao solo em segurança, parou no topo do morro com o qual o avião em breve iria colidir e o viu se aproximando, procurou por Julius e o encontrou, desapareceu e quando voltou estava com o amigo. Gustavo quase desmaiou, mas Kid o amparou, foi um tele transporte longo e com carona, isso consome muita energia. Os três ficaram ali olhando o avião se aproximar e colidir contra o paredão da montanha, todo o morro estremeceu, houve uma explosão gigantesca e o avião caiu no chão.
Julius vasculhou os céus a procura dos anjos e viu que ainda digladiavam uns com os outros, de repente uma figura passou por Julius e seus amigos indo em direção a batalha, tratava-se de Guilherme. A fúria por ter perdido o avião lhe consumiu a serenidade, ele partia numa velocidade tão alucinante que seria impossível detê-lo.
Na batalha Rafael e Baltazar ainda não haviam conseguido causar grandes danos um ao outro, apenas chutes e ponta pés que de imediato eram absorvidos por suas habilidades de cura. Israel já havia causado tantos danos em seu oponente que simplesmente perdeu o interesse na batalha e agora passava somente a torturá-lo com estocadas frequentes em seus braços e pernas enquanto o inimigo inutilmente tentava continuar o impasse.
Israel sentiu a aproximação de Guilherme e decidiu terminar logo com a batalha. Partiu contra seu oponente e quando este tentou golpeá-lo perdeu Israel de vista que usara velocidade descomunal praticamente sumindo e reaparecendo as costas do adversário, aplicou um soco furioso na região onde ficariam as costelas que obrigou o Anjo Negro a tombar de lado já sem sentidos. Israel desferiu um golpe em velocidade alucinante com sua espada deixando um rastro de luz e separando a cabeça do Anjo Negro de seu corpo, sua existência jorrou numa nuvem de fumaça negra e fétida e em seguida desapareceu.
Guilherme viu que faltava apenas um dos adversários e imprimiu mais velocidade, era um verdadeiro disparo de míssil indo contra seu objetivo, Rafael percebeu a aproximação e afastou-se, acreditava que o impulso do pequeno anjo fosse o bastante para dar cabo de Baltazar, este montou uma base defensiva, o que deixou Guilherme confiante de que não tentaria esquivar-se. Quando estava a centímetros algo ocorreu. A frente do Anjo Negro uma fissura surgiu, um buraco negro, o pequeno anjo não teve tempo de desviar e o atravessou sumindo de vista, Rafael partiu desesperado contra Baltazar, mas o próprio também passou pela fissura com um sorriso no rosto, então ouviram sua voz ecoando.
- Faremos bom uso da existência deste anjinho, obrigado pela oferenda Rafael. - Sua existência desapareceu, sua voz, seu cheirou, ele havia simplesmente sumido.
- Manipulador do espaço? – Perguntou Israel
- Na verdade das dimensões, ele abre portais entre as dimensões, estranhei que não tivesse feito isso durante a batalha, devia esperar uma chance de levar um de nós debilitado ou um anjo que ele tivesse chance de vencer sem destruir. – A expressão de Rafael era dura – Não é a primeira vez que eles levam anjos para o inferno e aqueles que voltam no geral morrem, não sei o que fazem, mas Guilherme não tem chance.
Israel baixou a cabeça, viu seu grupo, percebeu que Gustavo olhava para cima também, fez um sinal para Rafael indicando que descessem, atingiram o solo rapidamente, pararam atrás dos humanos que agora olhavam para baixo, olhavam para o avião destruído, pensando nas pessoas mortas, pensando que eram culpados por aquilo tudo. Israel tocou o ombro de Gustavo que se virou olhando para cima, a diferença de altura entre eles era de mais de dois metros.
- Você não teve culpa meu amigo, cada um aqui sabia dos riscos, estamos nisso para evitar que o desastre seja maior, graças a Deus vocês continuam vivos, não fosse assim nossa peleja seria muito maior e os riscos para os filhos de Deus também. – Gustavo nada disse, apenas olhava para os olhos do arcanjo, ficou assim por alguns segundos e depois baixou a cabeça e virou-se para Julius.
- O que faremos agora? Acho que tenho um GPS aqui, mas não sei se pega numa região tão afastada, precisamos dar um jeito de prosseguir viagem.
Julius estava um tanto transtornado e não respondeu de imediato. Por fim respirou fundo e respondeu.
- Rafael, pode nos dizer em que direção seguir para chegar a cidade mais próxima?
Rafael confirmou e alçou voo, subiu até não poder mais ser visto, passados alguns segundos ele retornou.
- Vocês terão que descer a encosta, tem uma rodovia não muito longe daqui, seguindo para o norte, ela leva a uma cidade seguindo para oeste. O sol vai nascer em algumas horas, melhor acamparmos aqui e prosseguirmos pela manhã.
- Nenhum de nós depende de luz para enxergar no escuro, podemos seguir agora mesmo. – Disse Kid que estivera calado desde que saíram do avião, transformou-se, tomou distancia da beira do penhasco, correu e saltou, era uma queda livre de pelo menos cem metros indo direto para o seio da floresta. Julius tomou distancia e fez o mesmo, Gustavo esperou para ver onde Kid iria pousar e se tele transportou.
- Não querem ficar aqui, ver o avião lhes faz sentir culpa – Israel falava com a voz um tanto fraca – humanos não entendem que não podem fazer tudo.
Rafael concordou um tanto triste e alçou voo seguido de perto por Israel.
O grupo viajou a passos rápidos, Kid ainda na forma Lupina ia à frente, era melhor na floresta do que os outros dois. Gustavo ativou a runa que fortalece o corpo e seguia como podia e Julius ia fechando o comboio. A travessia foi bem complicada, levando em conta que estavam numa região de mata fechada, onde arvores com raízes enormes impediam os viajantes de caminhar normalmente, levaram quase três horas para encontrar a rodovia. Rafael seguiu à frente para ver se uma das cidades teria aeroporto, mas nada encontraram, decidiram seguir para o leste e de lá conseguir um veículo para prosseguir viagem.
Caminharam por mais de duas horas numa velocidade incrível para humanos. Kid voltara à forma humana e já colocara outra vestimenta, Gustavo estava exausto, usar o dom da força física era conveniente para acompanhar o ritmo de seus companheiros, mas o consumo de força vital estava alto, precisavam alcançar a cidade logo e ele ia precisar de um período de sono razoável assim como uma boa alimentação.
Quando chegaram à cidade eram quatro da manhã, encontraram um hotel de beira de estrada nas proximidades do centro da cidade e passaram o resto da noite ali. Foi uma noite complicada para todos, Gustavo, exausto e faminto sonhou a noite toda com a explosão do avião, vez após outra e de novo, “reviveu” o triste episódio dezenas de vezes.
Kid mal dormiu, sempre que cochilava via o avião indo em direção do paredão e abria os olhos para desfazer a visão que se seguiria. Julius conseguiu dormir, e ao invés de sonhar com os eventos ocorridos, sonhou com os eventos do porvir, sonhou com um mundo sombrio e vazio, sonhou com um mundo de tortura e dor, como se o próprio inferno estivesse na terra, viu naquela noite o que os eventos do agora poderiam desencadear.
Kid desistiu de dormir por volta das sete da manhã e abandonou o quarto, foi até um restaurante adjunto ao hotel e tomou café da manha. Ali conseguiu informações sobre onde estava e qual a distância para o aeroporto mais próximo, estavam na cidade de Colider, em meio ao nada, a boa notícia é que teriam de seguir para o norte para a cidade de Alta Floresta onde de avião poderiam chegar até Manaus.
O lupino retornou ao quarto e encontrou Julius já acordado.
- Consegui informações sobre o aeroporto.
- Sim eu sei, estava monitorando a conversa, me desculpe e sim, acho sua ideia perfeita, se mais alguém morrer por minha causa não vou aguentar.
- Certo. – Pegou o celular acessou a Web a fim de viabilizar a viagem a partir de Floresta Alta. Encontraram uma empresa de frete particular que dispunha de um jato que comportava até vinte passageiros, não queriam correr o risco de colocar muitas vidas em perigo. Kid fechou com a empresa por telefone e informou que até meio dia estariam lá, a viagem de carro levaria por volta de duas horas e meia, isso obedecendo à sinalização, o que não seria o caso, então saindo as dez da manha chegariam a tempo.
- Fechei para meio dia – disse Kid – acho que saindo as dez fica tranqüilo, já consultei no mapa, não tem segredo pra chegar até lá, temos que conseguir um carro, já chamei um taxi, não podemos rodar por ai usando nossos dons.
- Tudo bem então, vamos deixar Gustavo sozinho aqui?
- Não senti nem vi nada de estranho por aqui, mas se preferir ficar eu volto da cidade em uma hora, deixe-o dormindo, precisa se recuperar.
- Yes Sir – Disse Julius sorrindo, Kid deu um aceno e saiu do quarto.
Julius ficou alguns instantes olhando para Gustavo e lhe ocorreu que Israel e Rafael não deram as caras até o momento. Saiu do quarto e seguiu para o restaurante a fim de tomar café da manhã, olhou nos telhados e identificou as figuras imponentes dos Anjos, entrou no restaurante.
Voltou para o quarto por volta das nove horas, Gustavo estava deitado na cama, olhos abertos e perdidos no teto, assim que Julius se aproximou ele começou a falar.
- Você sempre passou por isso? Ver humanos morrendo por causa das batalhas espirituais?
- Muitas vezes – disse Julius com tristeza – incluindo minha família, meu pai, minha mãe, meu tutor e muitos amigos.
- Entendo, não tinha visto pessoas morrendo por um ataque dirigido contra mim, pelo menos pessoas inocentes, que não sabem nada sobre nosso mundo. Não deve ser fácil para você – Gustavo não tirava os olhos do teto, olhos cheios de lágrimas – Preciso ficar mais forte, o quanto antes, não quero passar por isso novamente. Assim que isso tudo acabar vou caçar uma coisa que me fará o mais poderoso mago de minha época.
- Liber Amon Rá – disse Julius olhando para Gustavo que agora se sentou e o olhava surpreso – com as anotações de Merlin, conheço a história, dizem que o livro está protegido por uma infinidade de feitiços antigos e feras poderosas, tem certeza de que quer brincar com isso?
- Sim, eu tenho – Gustavo estava decidido – Se eu sobreviver a esta batalha será meu objetivo, meu mestre tem inscrições antigas que falam de magos que usaram feitiços tão poderosos que drenava suas vidas muito rapidamente, tenho certeza de que se trata de Liber de Amon Rá. Se eu tiver aquele livro e dominar os ensinamentos terei o poder necessário para proteger nossa gente.
- E também será poderoso o bastante para se considerar invencível, erro comum entre nós humanos e que geralmente nos leva a ruína, mas entendo o seu ponto de vista, se o encontrar espero que faça bom uso, se você descambar para as sombras vou estar na sua cola.
Julius não sorriu em momento algum, conhecia histórias de pessoas que usaram este livro, conhecia a natureza que o livro carregava. Geralmente as pessoas que adquiriam esses ensinamentos passavam a agir como deuses e perdiam-se nas trevas da insanidade, erguendo impérios que acreditavam ser indestrutíveis e absolutos, mas quem consegue esse tipo de poder acaba por conhecer ruína maior ainda e ele não queria ver seu amigo nessa situação.
- Por mim tudo bem – disse o mago animado – se eu começar a fazer súditos faça o favor de me dar uma boa surra – deu um sorriso triste, ainda assolado pelos pensamentos sobre a noite passada – Tenho orgulho de ter você como amigo, se eu tivesse que enfrentar essas situações por muitas vezes já teria perdido a fé. – Lembrou-se de algo bom e deu um pulo da cama. – Ontem eu orei no avião, eu tinha um pedido a Deus, mesmo sabendo que era impossível e quando eu estava falando com Deus tenho certeza de que ele me ouviu. Tenho certeza de que respondeu, meu coração se encheu de alegria e esperança, mas também da certeza de que eu nada podia fazer para ajudar as pessoas no avião – fez uma pausa para recuperar o fôlego – eu vi anjos. Finalmente eu vejo os benditos anjos.
Julius achou graça na mudança repentina de humor de Gustavo, com certeza ainda era um jovem, o bastante para ter essas variações emocionais, era bonito ver isso, Julius e Kid perderam isso há muito tempo.
- Eles estão do lado de fora, no telhado, o cara com quatro metros e tanto de altura é Israel, o anjo que está cuidando de você no plano espiritual.
Gustavo vestiu uma bermuda e uma camiseta, correu para fora do quarto e começou a acenar para os anjos, Israel rio alto e saltou até Gustavo.
- Sabe que provavelmente aquele povo olhando pela janela o toma por louco não é?
Gustavo inclinou o corpo e olhou para o restaurante, havia pelo menos cinco pessoas com olhar curioso em sua direção. De dentro do restaurante as pessoas o viram correr e começar a acenar para o alto, acima do telhado e agora o viam com o corpo inclinado, uma criança ria olhando para o mago.
- A é, tem razão, eles não podem ver – Gustavo ficou um tanto encabulado – bem, hum, vou tomar café da manha então, passou por dentro do anjo e sentiu um poder monstruoso, virou-se para trás espantado.
- Nossa, isso soa meio gay, mas passar por dentro de você é muito bom – Disse isso e caiu na gargalhada sob um olhar confuso do Arcanjo – bem, nos vemos depois – disse isso e entrou no restaurante, ainda sob olhar curioso de algumas pessoas – Bom dia pessoas, ta bonito lá fora né, já cumprimentaram os pássaros? Fizeram alongamento? Riram a toa? – ninguém disse nada – então ótimo dia.
Foi até um dos bancos no balcão do restaurante e tomou café da manha tranquilamente, levou uns vinte minutos comendo uma quantidade incrível de pães com queijo e presunto e tomando suco de laranja. Quando terminou o dono do estabelecimento o olhava com terror nos olhos, nunca em sua vida havia visto um homem magrelo comendo tanto. Pagou a conta e voltou ao quarto, no caminho encontro Kid, que acabara de estacionar uma CR-V em frente ao quarto que ocupavam.
- E ai garoto, você está bem?
- Poderia estar melhor, mas são ossos do ofício eu suponho, não vamos falar sobre isso, já vai me ajudar muito.
- Mas é um bebê chorão mesmo - Disse Kid sorrindo – Espero que tenha mais fibra na hora de lutar, isso foi só o começo.
Entraram no quarto, arrumaram as coisas e partiram para o aeroporto. A viagem até Floresta Alta seguiu sem complicações, chegaram lá em uma hora e meia, com tempo de sobra para fazer os procedimentos necessários, os três tiveram que mudar as identidades para prosseguir viagem, já que eles deveriam estar mortos. O jato era luxuoso, com certeza usado periodicamente por algum magnata político ou dono de grande empresa. Além dos aventureiros, apenas piloto, copiloto e uma aeromoça estavam no avião, que levou cerca de duas horas para percorrer o percurso entre Floresta Alta e Manaus.
Quando desembarcaram no aeroporto tiveram uma grande surpresa, principalmente Gustavo, havia uma miríade de demônios no local, legiões na verdade, os anjos que ali estavam ficavam de prontidão para a batalha em tempo integral, mas os demônios pareciam estar apenas “vigiando” o local.
- Com certeza estamos no lugar certo – disse Rafael.
Alguns demônios grandes e horrendos vieram na direção do grupo com espadas em mãos. Kid reconheceu um deles.
- Má, que coisa mais estranha, encontrar meu algoz sem estar atracado com um lobinho medíocre – Kid usava as palavras em tom de zombaria. Julius e Gustavo olhavam confusos.
- Sabe que posso destruí-lo aqui e agora não é mesmo – Rafael disse isso apontando a espada para o peito do demônio.
- Por que você não tenta criança, veremos se vocês dois dão conta de nosso contingente – esbravejou o demônio – saiam de minha cidade agora, não quero vê-los aqui.
- Se tivesse certeza absoluta que pode nos destruir já teria feito, provavelmente conhece o manto de meu amigo, sabe que se ele quiser todos vocês morrerão, não vejo anjos sombrios para socorrê-los.
O demônio tremeu, apertou o cabo da espada e deu as costas ao grupo, indo embora com seus capangas.
- Ele não sabe que Israel não pode tirar o manto sem ajuda de outro arcanjo ou do próprio Deus, vamos aproveitar isso para sair daqui.
Caminharam em direção a porta que dava acesso ao setor de desembarque do aeroporto, quando entraram lá viram que a coisa estava mais equilibrada, havia muitos anjos lá, todos prontos para a batalha.
- Tem um carro nos esperando lá fora, vai nos levar a um hotel aqui perto, de lá podemos planejar nosso próximo passo.
Foram para o hotel e ficaram ali por alguns dias, Rafael passava dia e a noite sobrevoando a cidade em busca de informações, monitorando, com a ajuda de outros anjos, as vibrações no véu, tentando sentir a força do arcanjo que estava na terra protegendo um portal e ao final do sexto dia teve um indício. A noroeste de Manaus havia algumas cidades e uma vasta imensidão de floresta tropical intocada. Á cerca de duas semanas alguns anjos sentiram um abalo na estrutura espiritual, uma explosão e depois disso identificaram alguns demônios e vampiros seguindo para o ponto onde o abalo ocorreu, como não existem humanos por lá não ocorreu aos anjos investigar, mas esse parecia ser o ponto certo.
Prepararam suas coisas e conseguiram um pequeno avião para levá-los até o local mais próximo, depois tomaram um barco e mais a frente um jipe para chegar ao limite de toda a civilização, a partir daquele ponto teriam de seguir a pé.
De Manaus, onde ficaram sete dias, percorreram meio dia de avião, um dia de barco e um dia de carro, totalizando dez dias de viagem. Agora estavam embrenhados na mata, indo aos poucos ainda com Rafael sobrevoando e tentando captar o poder divino do arcanjo ou do portal.
Certa noite estavam acampados em volta de uma fogueira, todos dormiam tranquilamente e Rafael ainda estava em sua ronda, acabara de sentir um abalo e voltava para o acampamento para buscar os outros. Assim que chegou ao acampamento e despertou seus companheiros sentiu um novo abalo, este mais forte. Israel entrou em transe, Kid, Gustavo e Julius olharam para ele um pouco confusos. O manto negro se desfez e seu poder foi liberado de uma vez, Gustavo que acabara de despertar desmaiou, Kid e Julius caíram de joelhos arfando, a pressão espiritual que o arcanjo expandia era insana, Rafael colocou um dos joelhos no chão e fez uma esfera de luz para proteger os amigos, Israel deu um urro ensurdecedor.
- URIEEEEEEEELLLLL
E disparou pelos céus, deixando o grupo para trás.