02 - Dom

 

Julius sentiu algo sendo cravado em suas costas, sentiu a pele sendo rasgada, a carne atravessada e ossos partindo, um gancho o retirava de sua cama e o elevava às alturas, a dor era insuportável, mas olhava em volta e nada via.

Tão rápido quanto começou, terminou. Ele foi jogado ao chão, a dor nas costas se intensificando ao passo que memórias antigas, distorcidas pelo mal, vinham a sua mente. Via as feras vindo em sua direção, atravessavam paredes, subiam pelo teto, escondiam-se nas sombras de onde apenas os olhos, hora vermelhos, hora amarelos, brilhavam perscrutando o ambiente a procura de alguém a quem devorar. Não estavam fisicamente ali, não podiam estar, eram demônios, Julius sabia disso. Sentiu-se, mais uma vez um menino de cinco anos, não querendo acreditar no que via.

Os amaldiçoados cercavam algumas pessoas e se afastavam de outras, no inicio parecia que escolhiam aleatoriamente suas presas, mas aos poucos se percebe que na verdade estão em busca daqueles que são mais fracos, daqueles que não se preocupam com suas almas tanto quanto deveriam. Não havia somente bestas rondando homens, mulheres e crianças, havia anjos também, mas a proporção de pessoas que se submetiam aos demônios era bem maior. Seguiam os fracos de coração, aqueles que poderiam ser levados para as trevas, para a escuridão dos desejos da carne com mais facilidade.

De onde vinham essas criaturas?

Do próprio inferno!

Porque tinha que fazer parte disso? Porque podia ver o que outros humanos não viam?

No início Julius não tinha resposta para essas perguntas, não compreendia o bem que esse dom poderia lhe trazer no futuro. Tudo o que via no início era a maldição de ter que ver o que se escondia dos olhos humanos, o que estava por trás do véu. Demônios, monstros inimagináveis, criaturas da escuridão, não queria vê-los, não queria senti-los, mas esse parecia ser o seu legado a sua sina.

No inicio os temia, no inicio os evitava, no inicio não sabia quem era e não conhecia o propósito disto. Foi criado por seus pais, cristãos fervorosos, pessoas de valor, pessoas de boa índole, pessoas abençoadas por Deus. Quando seu pai orava, Deus o atendia e quando sua mãe falava às pessoas, falava com sabedoria divina, cada qual com um dom divino e Julius, no inicio, achava que era amaldiçoado, pois via as feras, via pessoas sendo induzidas ao mal, via pessoas sendo acariciadas por demônios!

Tinha mais ou menos cinco anos quando percebeu que as coisas que via não estavam ali, não no plano físico, não para as pessoas comuns. Seu pai e sua mãe pediam para atender ao chamado do Senhor e esperar até entender o seu dom, esperar até que Deus lhe mostrasse o caminho que deveria seguir, o que fazer com o que via, como ajudar pessoas, mostrar-lhes a segurança do amor de Deus, mas ele não via aquilo como um dom e sim como uma maldição, como uma praga que fora jogada sobre si, amaldiçoado a ver pessoas queridas sendo envolvidas pelas armadilhas do diabo e não poder fazer nada a respeito.

Desde cedo seus pais lhe ensinaram que esperar em Deus é a chave para conquistar objetivos, ensinaram que ouvir a voz de Deus é a chave para cumprir seu destino.

Certa vez, ainda pequeno, quase sucumbiu à loucura quando viu um demônio devorando a alma de um humano, a pessoa tinha, aos olhos humanos, um ataque de convulsões, tamanha a dor que sentia enquanto o demônio cravava suas garras e dentes em sua alma. Não fosse um anjo desferir um violento golpe no demônio, o humano teria morrido e ninguém além de Julius, com pouco mais de sete anos, saberia o que realmente houve.

Tremia transtornado enquanto o demônio sacava uma espada e iniciava um duelo com o Angelical, viu outros demônios juntando-se a batalha e viu no final à luz abandonar os olhos de quinze demônios e por fim o próprio Anjo foi morto, dado o numero de inimigos que enfrentara.

Enquanto essas lembranças enchiam sua mente foi levado a um lugar escuro, nada de iluminação artificial, apenas a luz do luar banhava o local. Arvores por todo lado, lembrava um bosque ou uma floresta, seu corpo continuou avançando até chegar a uma clareira, onde foi jogado ao chão. Levantou-se, concentrando-se na dor em suas costas, quando tentou limpar a roupa percebeu que estava nu, o corpo cheio de feridas e sujeira, concentrou-se ainda mais na dor nas costas, precisava sair dali.

Olhando em volta reconheceu o lugar em que estava. Já estivera ali antes, foi onde pela primeira vez viu algo além de anjos e demônios, foi a primeira vez que viu seu tutor, Joel, aquele que o ensinou a controlar sua força, aquele que o ensinou a atravessar os séculos, a rasgar o vento com sua velocidade e dizimar miríades de inimigos a sua frente sem temer a morte.

Ele não estava ali neste momento, apenas Julius estava. Olhando ao redor sentiu saudades, sabia para onde olhar, pois lembrava-se de onde viera o vampiro que tentou tomar sua vida naquela noite.

Fechou os olhos por um instante e virou-se para aguardar a chegada de seu inimigo, ao abrir os olhos teve de reprimir um grito. Um demônio estava ao seu lado, grande e forte, o olhava fixamente, sorria com arrogância. Desapareceu da frente de Julius reaparecendo ao seu lado num giro rápido e mortal, descreveu um arco com sua espada a fim de partir Julius ao meio, este defendeu o golpe com sua própria espada, agarrou a mão do demônio com a outra mão e trouxe o demônio para junto de si com força aplicando uma cabeçada descomunal. Tudo ao seu redor tremeu violentamente e as imagens ficaram distorcidas. Elevou o demônio em suas mãos, acertou-lhe um potente chute no estomago que o jogou para longe. Fechou os olhos mais uma vez e forçou-se a despertar, não queria rever aquele dia, era um dia triste, seus pais haviam sido levados, o vilarejo onde morava fora dizimado, amigos, parentes e tudo o mais, poucos sobreviveram àquela noite, mas somente ele ainda vivia e como vivia, fazia séculos desde aquele dia, séculos.

Julius levantou com o corpo coberto de suor, fora mais uma noite repleta de pesadelos, mais uma noite sendo atormentado por demônios que tentavam forçá-lo a desistir. Desistir de seu dom seria o suficiente para que os demônios o abandonassem, seria o bastante para deixar o rapaz em paz.

Olhou para o relógio que marcava exatamente três horas da manha. Suspirou profundamente, mal podia lembrar-se de quando teve uma noite de sono tranquilo. Levantou-se e olhou para o lado esquerdo do quarto, lugar onde a fera que o atormentava em seus sonhos tinha o costume de se aninhar, lá estava ele. Um demônio com asas de morcego, olhos pequenos e corpo forte, a neblina de enxofre saia em baforadas longas de sua boca grande, dentes afiados como navalhas, dentes prontos para dilacerar a alma assim que lhe fosse permitido, assim que tivesse a chance.

O demônio sorriu com desdém até iniciar uma gargalhada, viu que o rapaz não lhe dava atenção e grunhiu indo em sua direção, mas quando deu o primeiro passo perdeu Julius de vista. Este reapareceu a sua frente e lhe aplicou um violento soco no queixo que deslocou seu maxilar, o humano cruzava o tecido da realidade com mais facilidade do que se poderia crer ser possível.

Recolocou o maxilar no lugar com um estalo e buscou o inimigo com os olhos, ouviu a torneira da pia do banheiro sendo aberta, também não entendia como um humano podia ser tão rápido, atacar no plano espiritual sem sair do físico, poucos demônios tinham essa capacidade, na verdade apenas Anjos Negros.

Krinus era o nome do garboso demônio. Tinha aproximadamente dois metros e trinta de altura, seu corpo era excessivamente forte. Sua boa escancarada tinha dentes enormes e afiados feito navalha. Suas asas eram compridas e imponentes não lembravam as asas de morcego que costumavam ter os demônios, as dele pareciam mais com assas de um dragão, pele dura e forte, marcadas por fogo e escamas. Essas asas lhe caiam como uma capa e em suas mãos haviam garras feitas de aço forjado no inferno.

Sua tarefa era atormentar este Iluminado e extrair dele a vontade de lutar, minar suas forças e deixá-lo fraco para combates físicos, torná-lo presa fácil para os demais.

Não vinha tendo sucesso, o humano tinha uma capacidade de controle sobre sua mente que era realmente incomum, estava nessa tarefa sem graça a pelo menos um mês e não progredira muito, mas havia pedido reforço e logo tomaria as forças, se não a própria vida, deste humano.

Julius foi ate o banheiro sentindo o pulso arder pelo soco aplicado naquele maldito. Olhou para o espelho e percebeu como estava ensopado de suor, abriu a torneira e encheu a mão de água levando até o rosto, repetiu isso por algum tempo até se convencer de que teria de tomar um banho para conseguir dormir novamente, inspirou profundamente e foi fazê-lo.

Krinus olhou ao redor do quarto, não tinha muita coisa, apenas uma cama de casal no estilo “King Size” coberta com um edredom branco e travesseiros de penas de ganso. Um criado mudo com uma pintura antiga, a imagem de um cavaleiro e um guri ao seu lado, tratava-se de Joel e Julius. Uma escrivaninha feita de uma madeira negra que brilhava devido ao tratamento que recebera do mestre carpinteiro que a fez, dezenas de anos atrás e nela repousavam uma bíblia escrita em latim, uma das poucas réplicas feitas pelos primeiros cristãos, vários livros espirituais e místicos e um caderno de anotações.

Acima da cama, havia um quadro que representava os quatro cavaleiros do apocalipse, mas de um modo muito terrível, estavam todos montados em cavalos magníficos, mas os cavaleiros eram todos esqueletos cobertos com o manto da morte e no lado oposto ao da parede em que a cama estava ficava o guarda roupas. Havia um closet também, que era utilizado para guardar todos os tipos de ferramentas que ajudavam no trabalho.

O demônio se dirigiu a sala, teria que esperar até que Julius terminasse o banho e deitasse para segui-lo ate a terra do limbo e destroçar sua mente através dos sonhos, terríveis sonhos de morte e tortura, doces sonhos aos seus olhos, era sua habilidade mais forte, era o que mais gostava de fazer. Como a mente humana era fraca e corruptível, como era fácil convencer um pai a matar o filho, um homem a matar sua esposa, uma esposa a trair seu marido, uma filha ou filho a usar drogas, deliciava-se corrompendo humanos, era sem duvidas um mestre nessa arte.

Na sala havia poucos móveis dispostos de maneira organizada. Um hack com televisor à esquerda, tinha alguns livros, um aparelho de som, DVD´s e um aparelho de DVD. Um sofá de frente para o hack e uma mesinha de centro entre ambos, mais quadros decoravam este recinto e todos com anjos assustadores aos olhos de Krinus, a casa em si parecia uma base para anjos e em frente à porta do quarto, na parede oposta, uma estante de livros. Onde deveria estar a parede direita havia somente meia parede que permitia a vista da cozinha estilo americana e ainda um pequeno corredor que levava a saída da casa.

Krinus sabia que vários dos artefatos colocados sobre um tipo de mesa ao canto esquerdo de onde estava, eram muito antigos para terem sido reunidos por um mortal, sabia que este era especial e antigo, mas não conhecia o truque que o permitia viver por tanto tempo. Quando foi enviado para substituir um demônio fraco que não havia dado cabo do serviço, foi avisado pelo próprio Lúcifer que este não era um trabalho qualquer e por isso estava enviando um príncipe dos demônios. Não acreditava que houvesse na terra, humanos que ainda fossem páreos para demônios, achava que já haviam acabado com todos, mas agora via que não era bem assim.

Demônios tinham seus lacaios, vampiros, gárgulas, lupinos e outros e logo um deles viria ao encontro deste humano e o faria em pedaços. Era este o reforço esperado, não conseguia tocar o humano, pois sua alma estava envolta em muito poder divino, mas o vampiro teria muito mais chance e sem anjos por perto para proteger Julius seria muito fácil para a dupla demoníaca destroçar este verme. Voltou ao quarto a tempo de ver seu inimigo deitando-se e se cobrindo, em minutos recomeçou seu trabalho.